Dilúvio aos sessenta

Dilúvio aos sessenta

E, como todos os dias, lá estava ela tomando o seu chá. Cinco e meia da manhã, em uma manhã fria, em uma varanda fria, recebendo uma fria brisa no rosto. Voavam alguns pássaros em uma direção qualquer... Ela fitava-os, deprimindo-se, absorta em devaneios tão tolos quanto os pássaros que por ali passavam. Por um motivo qualquer, eles não eram mais invejáveis. Se trouxessem ou representassem alguma outra coisa, certamente seria a simples e pura angústia. Tão cedo, tão absurdamente cedo, e ela já estava impecavelmente vestida e maquiada. Mas ela só tinha 60 anos. O chá frio, aos poucos, ia esfriando o seu coração e congelando as lágrimas e sufocando o grito e estancando o sangue e petrificando a alma, até o ponto em que toda a amargura encerrava-se em um gole seco. Ela fechava os olhos, suspirava e então tomava outro gole e, intimamente desesperada, esvaziava xícaras e mais xícaras.

Pois bem, este era o início de mais um agradável dia. Todos os dias eram assim, mas será que hoje, um dia que parece especial, e até poderia sê-lo, tem alguma coisa de diferente? Não. Tudo permanecia igual. Fim da hora do chá. Levantou-se, com elegância, e pôs-se a caminhar para dentro da mansão. Só existiam dois destinos para quem adentrasse naquela varanda: um deles era voltar. Então ela voltou, saindo direto na sala de música. Ultrapassou a sala, sem nem lembrar quais eram os instrumentos que estavam ali havia tantos anos... Caminhou mais um pouco e, inesperadamente, parou ao lado da sala de arte, ou assim ela passou a se chamar quando o marido morreu. Virou-se e deparou-se com aquela velha porta, fechada desde o falecimento do seu respectivo criador. Hesitou... “Por quê?” – ela perguntava, sem saber a quem perguntava.

Abriu a porta. Apreciou por poucos segundos todos aqueles quadros, até que o seu inóspito coração encolheu e como quem fechasse as portas da alma, fechou as portas daquela sala amedrontadora. E no corredor, ela sentiu vergonha, remorso e arrependimento. Uma vontade de chorar dos infernos bateu-lhe no peito, rasgando uma parte do seu ego e do seu orgulho, mas não derramou uma lágrima sequer. Não poderia, sendo quem e como era, borrar a maquiagem. Deu meia-volta, subiu pela escada aqueles habituais dois andares e foi para o próprio quarto, como de costume. Sentou-se na poltrona, mas não para tricotar, como prezam as boas histórias, e sim para procurar uma solução para os seus problemas. Procurou, neste dia tão mórbido quanto todos os outros, solução para os sentimentos que a perturbavam As causas ela esqueceu de procurar, por um motivo qualquer. Vai ver é porque tinha gente batendo na porta do quarto.

Entrou no quarto a jovem Angélica, menina boa e esforçada, que juntamente com um jardineiro e um motorista, formava o quadro serviçal da casa. Pouca gente para muito espaço, é verdade. Todavia, é assim que o mundo funciona. Ao abrir a porta e antes mesmo de entrar, recebeu uma única ordem: avisar ao motorista que a patroa estava de saída. Poucos minutos depois, ainda vestida e maquiada, e agora de óculos escuro, ela foi ao cemitério.

Não levou uma flor sequer para o marido. Não derramou uma única lágrima, e nem deu sinal de fraqueza. Apelas olhava-o, como se fosse uma roupa cafona em uma vitrine espalhafatosa. Concomitantemente, seu coração borbulhava de amor e ódio, entrelaçados como rios que se juntam e deságuam na mesma foz. Aquele desgraçado fora uma das duas coisas que já amara na vida. Ele era o único, e quando se foi, ela substituiu seu amor por uma nova paixão, muito mais acessível e de fácil compreensão.

Assim que saiu do cemitério, em habitual surto do século XXI, foi ao shopping fazer compras. E ela comprou muito, e ficou quase feliz, sentiu-se realizada e praticamente tranqüila. Trocara os seus sonhos pelo consumismo selvagem, pela máscara impenetrável, pela hipocrisia consigo mesma! E comprava tudo, o necessário, o desnecessário, o novo, a moda, a inveja! Comprava livros que não leria, roupas que não usaria, jóias que esqueceria... Comprava o orgulho dos vendedores e transeuntes, e cada passo fulminante corroborava a estratificação social, acentuando e confirmando a indiferença execrável do seu coração hipocondríaco! Sentia-se superior, por alguns momentos, até se lembrar que vivia em um mundo fúnebre, despótico, marasmático, deveras asmático e incalculavelmente triste. Aquela mulher atrás dos óculos intransponíveis e da maquiagem inexaurível escondia-se para esquecer das mazelas do mundo e dos próprios medos. Acontece que ela também sentia fome, e, então, voltou para casa para almoçar.

Chegando em casa, atirou as comprar em um canto e gritava para que Angélica servisse o seu almoço, pois ela tinha pressa. Pressa de quê? De nada, mas ela tinha pressa. Muito eficiente, Angélica já havia posto o almoço à mesa, e estava ali perto, de plantão, para o caso da patroa chamá-la. A patroa sentou-se à mesa contemplando a magnífica extensão e beleza da mesma. Uma mesa incomum, belíssima, para trinta pessoas. Para trinta pessoas, entretanto, havia vinte e nove cadeiras vazias. Na ponta, isolada do nada, a soberana comia, solitária e vazia.

Antigamente, quando finado era vivo, ele trazia famílias pobres para almoçar com eles toda segunda, quarta e quinta-feira. Tinha também muito mais empregados, mas não por luxo desnecessário, e sim porque sentia-se feliz quando empregava um pai de família. Que homem notável! Já sua esposa sempre fora indiferente e vaidosa. Mas ela admirava-o e amava-o acima de tudo! Como homem, como pintor, como músico e, espelhando-se nele, o tempo fazia com que se tornasse uma pessoa melhor. Era um homem honesto, justo, talentoso, bonito e rico! É lógico que esse homem nunca existiu. Seus almoços para os pobres serviam de publicidade para sua empresa, ele tocava e pintava muito mal, por isso seus quadros estavam todos guardados em uma sala e os instrumentos empoeirados entregues às moscas. Ele não sabia que era a própria esposa quem comprava seus quadros e os escondia, já que ela não queria vê-lo triste. Os empregados eram constantemente substituídos, visto que ele não confiava em nenhum deles. Embora não chegasse a ser feio, bonito também não era. Sonegava imposto e demitia sem justa causa. De qualquer maneira, duas coisas eram certas: ele era rico e ela o amava.

Quando ele se suicidou, jogando-se de uma varanda, foi como se o mundo tivesse acabado. Ela trancou a maioria dos aposentos da casa, despediu quase todos os serviçais e começou a tomar chá pela manhã. Era tão apegada ao marido ao mesmo tempo em que sentia-se tão presa e dependente... Com o tempo, adaptou-se à perspectiva do século XXI, e gradualmente trocou o amor de um homem, independentemente de suas falhas, pelo prazer jocoso e multifacetado de um sistema no qual os aforismos não tem valor algum. Era como se o mundo vivesse o tempo todo o Carnaval de Veneza. Tantas máscaras diferentes... Uns escondiam-se atrás da fé e tantos outros atrás de um caráter cético e niilista! Eram todos, enfim, protagonistas de um baile de máscaras incansável, interminável e que se fazia inexpugnável através dos homens e sua cultura diletante, fortalecendo-se à base do continuísmo.

O destino do homem é viver em guerra e o que mudam são as armas, ela tinha certeza. Do que adianta cair o Muro de Berlim, se novos muros são erguidos? Do que adianta a independência das nações, já que um homem depende do outro? E ela era mais uma formiga, questionando o valor da vida, enquanto almoçava em uma mesa vazia, com o coração vazio e a boca cheia. Pensou até em chamar Angélica para sentar-se à mesa, um fio de esperança fez-se em seus olhos, pronto para quebrar a quietude insuportável e o silêncio apocalíptico. Mas pensou melhor e não deu o braço a torcer; não precisava de ninguém e seu orgulho era vitorioso. Que controvérsia!

Retirou-se da mesa e foi para o quarto. Começou a ler o jornal, mas teve a impressão de que o grau dos seus óculos havia aumentado, pois as notícias não mais eram entendidas por ela. Que diferença faz? Não tinha percebido como havia demorado no cemitério e no shopping, até que ligou a televisão e foi dar uma volta na casa (mansão, tanto faz)... Entrou na sala de música, e viu-se tocando aquele piano velho, distraída e cansada. Ela só conhecia melodias tristes e até se sentiu surpresa ao reparar que lembrava delas. Ela experimentou a harmonia de estar com ela mesma, ouvindo o próprio som e tocando a própria alma. Perdeu-se nas horas, na música e na vida. Lembrou-se do dia em que o marido morreu...

Os dois na varanda, leves, nus, no momento em que o Sol estava quase se pondo. O olhar de um fixo no do outro, depois de uma tarde sem luxúria, sem pecado e sim, coisa rara, uma tarde de amor... Os olhares eram feitos de fogo, de ardor, de uma paixão louca e que, de repente, não fazia diferença alguma. O segundo que antecedeu as palavras foi tão intenso, tão inexplicavelmente poderoso que o fogo virou gelo e ardeu esfriando as máscaras despedaçadas de dois seres humanos, de duas almas distintas que se ligariam atrás do próximo segundo, segundo este que insistia em procrastinar-se e que quando veio, veio com a potência de um gole de chá:

- Do que adianta você me olhar nos olhos, se não é capaz de enxergar as profundezas do meu coração? – Ela falou com a alma e a boca foi um instrumento desnecessário. E depois daquele dia, para quem quisesse saber, ele havia se suicidado.

Exausta, deixou o piano de lado e foi deitar-se, livre de adjetivos. Tão cansada que nem tirou a maquiagem. Entrou no quarto, olhou as compras do dia no canto e, com um discreto sorriso, fechou os olhos. Quando os abriu, sentiu-se diferente. Sentou-se na cama e passou a observar o quarto. De repente, a televisão começou a virar água. Sumiu, era água! Os livros começaram a virar água, junto com as jóias, as compras, a cama e com o seu orgulho! A água já estava na altura do peito quando sua própria roupa e brincos e colar e braceletes de ouro que estavam consigo viraram água. Ela sentiu-se leve, livre e feliz! Que harmonia, que paz, que mistério... Era uma felicidade tão grande que até parecia que o mundo era bom!

Subitamente, ela acordou. A televisão, as compras, as jóias.. Estava tudo lá! Que desespero! As lágrimas desceram impiedosas, borrando a maquiagem, destruindo tudo o que encontravam. Ela soluçava em um estado indescritível... O quão tarde seria hoje para chorar? Antes tivesse chorado mais cedo, de modo a evitar que as lágrimas viessem tão densas, caóticas e angustiantes! Saiu correndo, deselegante, em direção ao seu destino. Desceu os dois andares, deixou para trás a sala de música e pisou firme na varanda. Quantos amores havia tido na vida? Seriam dois ou um só? Seria o primeiro um pretexto para alcançar o segundo? Um colapso do século XXI? Ela não sabia.

Nasciam os primeiros raios de Sol e um pássaro voava livre dos grilhões de uma humanidade perversa. Ele vivia, mas não carregava o peso do viver humano. Só existiam dois destinos para quem adentrasse naquela varanda: ela não voltou pela porta que entrou, naquele que foi o dia mais feliz de sua vida.

João Guilherme Magalhães Monteiro de Almeida
Enviado por João Guilherme Magalhães Monteiro de Almeida em 19/07/2007
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