A visão de um homem quase cego

Tenho um problema de vistas, que me deixa a beira da cegueira. Enxergo apenas a dois palmos do meu nariz. Os meus óculos amenizam meu problema, mas não consigo ver com a nitidez de uma pessoa normal, longe disso, fico apenas menos cego. Não enxergar por não enxergar, resolvi abandonar os óculos e encarar o mundo sem nenhum pedaço de lente à minha frente. Andando e tropeçando em muitos degraus, fui pegando o jeito de andar e me esquivar das pessoas apressadas e dos postes. O vulto me indicava a direção correta a ser seguida. Com o tempo fiquei muito habilidoso numa arte que as pessoas normais fazem sem nenhuma preocupação: andar pelas ruas!

Eu andava com extrema dedicação, criava jogos mentais. Começava com dez pontos e, em uma caminhada, a cada lugar que eu esbarrava ou tropeçava eu perdia um ponto. Com o tempo eu via uma média 6 se transformar em uma média 8,5. Os dias em que eu finalizava com 10 pontos, ficava extremamente feliz.

E nessa dedicação fui me fazendo mais feliz. Já estava andando sem esbarrar em ninguém. Apesar da quase cegueira, eu agradecia por ainda poder contar com o pouco de visão que me restava, porque ela me norteava. Ela me fazia alcançar as notas máximas. Ela me apontava os vultos dos quais eu fugia a fim de não colidir.

Mas um dia algo me entristeceu. Eu comecei a esbarrar! E minha média começou a cair! Depois de tanto treino eu sentia que meu esforço tinha ido todo em vão. Mas agora eu não esbarra por culpa minha, minha habilidade em esquivar ainda era aprimorada. O problema é que minhas barreiras não me ajudavam como antes, todos com suas cabeças baixas, atentas a um smartphone, sem ao menos olhar para o lado! Com uma multidão de pessoas assim vindo em caminho contrário a você, não tem como fugir de um ou outro encontro. O esbarrão é quase que inevitável.

Essas pessoas estavam entretidas com um mundo virtual e sequer podiam prestar atenção em algo que eu tinha como meu maior prazer, andar! Eu que lutei por tanto tempo para ser igual a eles, eles que ficaram igual a mim, cada vez mais cegos. Para mim um esbarrão era um ponto a menos e um motivo para melhorar no dia seguinte, para eles era apenas mais um esbarrão que seria esquecido dois segundos depois devido a maior relevância do conteúdo que acessavam em suas mãos.

Vi seres robotizados traçando retas mentais e andando ao acaso sobre essas linhas sem quererem saber o que havia pela frente. Neste momento percebi que eu enxergava muito mais que outras pessoas!

Então resolvi ir a um show, as mesmas pessoas seguravam seus smartphones filmando o palco, enquanto minha alma se deliciava com as belíssimas canções que eu podia ouvir. Eu fui a restaurantes, e até lá os aparelhos tecnológicos estavam presentes, a comida só não fazia poses, mas recebia uma grande quantidade cliques, enquanto eu comia e me deliciava, a recordação que eu queria daquela comida não era sua imagem, mas o seu sabor. Nas interações com outras pessoas alguns se perdiam nas conversar para dar atenção a uma outra coisa em seus celulares, eu interagia, sentia que por mais que não enxergasse bem, eu sentia a alma das pessoas, apesar de não ter o alcance necessário para olhá-las nos olhos.

Fui à beira da praia, em um dia ensolarado, me pus diante do mar. E eu sabia que havia uma linha do horizonte, mas essa linha é virtual, o mundo continua depois dali. Para algumas pessoas a linha do horizonte é mais distante, para mim aquela linha do horizonte era apenas a dois palmos do meu nariz, mas para a maioria, aquela linha jamais será percebida, por terem coisas mais importantes a fazer.

Pensei comigo mesmo: Como é bom enxergar tão bem sem ter olhos bons!

Fron Monseus
Enviado por Fron Monseus em 04/08/2016
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