O JACARÉ NA VARANDA (Prêmio SESI-MG de Literatura 2016)

Levantou-se rapidamente da cama. Abriu o guarda-roupa, pegou uma calça e a vestiu. Calçou em seguida as meias, os sapatos, passou desodorante e correu em direção ao banheiro. Estava atrasado. O despertador tocava sempre na hora certa, mas ele sempre achava que ainda era cedo, até se atrasar. Lavou o rosto, passou creme de pentear nos cabelos, ajeitou-os com as mãos, escovou os dentes. Correu de volta para o quarto. Procurou no guarda-roupa uma camisa. Todas amarrotadas. Lembrou-se de que se esquecera de comprar novas camisas de ‘malha fria’. Eram muito mais práticas, pois nunca amarrotavam. As de algodão era um suplício na hora da pressa. Escolheu uma em melhor estado e a vestiu. Pegou a carteira, o celular, ajeitou novamente os cabelos e correu em direção à porta e a abriu. Passou as chaves para o lado de fora e desceu o degrau apressadamente. Ao olhar para o lado, já trancando a porta, inclinando o corpo para sair, levou um baita susto! Havia um jacaré parado bem próximo ao portão da varanda! Em fração de segundos, desfez o movimento na fechadura e projetou-se para dentro de casa num pulo, fechando a porta rapidamente. Encostou-se à parede. Estava pálido. Suava. Não podia acreditar no que acabara de ver. Um jacaré! Na varanda! Devia estar delirando...

Correu para o quarto, subiu na cama e olhou pela parte de cima da janela em direção ao chão. Não conseguiu ver detalhes, mas sabia que havia algo ali. Desceu da cama, andou devagar até a porta. Pensou em abrir uma gretinha para ver. Hesitou. Abriu, enfim. Lá estava ele. Não era delírio. Era mesmo um jacaré. Enorme! Na varanda. Fechou a porta novamente. Deu duas voltas na fechadura. Sentiu o coração acelerado. Não sabia o que fazer. Foi até à cozinha, bebeu água. Sempre de olho na porta. Olhou para o relógio. Estava muito atrasado. Pensou novamente no que fazer. De onde, diabos, teria vindo aquele jacaré? Morava no alto de uma ladeira, sem córregos, nem rios, nem mesmo mato havia por perto. O quintal era todo cimentado e murado. Só havia uma entrada que era de frente para a rua. E o portão era forte, quase sem espaço por baixo. Como aquele bicho pré-histórico foi parar ali? Devia ser brincadeira, pensou. Claro. Deviam tê-lo inscrito numa daquelas pegadinhas da televisão. Era a única explicação. Riu da própria ingenuidade. Virou-se para a porta. Abriu-a. Disse em voz alta que descobrira tudo. Poderiam parar. Sabia que era brincadeira. Riu alto. Esperou. Não viu câmeras, nem movimentos, nem ninguém. A não ser o jacaré, que deu dois passos em sua direção, forçando-o a fechar a porta novamente. Esperou um pouco mais. Gritou que a brincadeira já havia perdido a graça. Ninguém atendeu. Percebeu então que não era pegadinha. As mãos suavam. O desespero voltava. Não tinha armas em casa. O mais próximo de arma era uma faca de cozinha sem corte e um martelo enferrujado que estava lá fora. E de que valeria uma faca ou martelo contra um bicho daquele tamanho?

Decidiu ligar para a polícia. Pensou por um momento. Ligou. Um jacaré? Na sua varanda? Perguntou o policial com voz de poucos amigos. Sei... Não sente vergonha em atrapalhar o trabalho da polícia, marmanjo? Não... Quer dizer, sim, quer dizer... Não é trote. É verdade, tem um jacaré na minha varanda, retrucou. Tu-tu-tu. O policial desligou. Ligou novamente. De novo essa história? Vá trabalhar! É o que estou tentando fazer, mas não posso sair de casa. Então ligue para a polícia florestal. Poderia me informar o número? Tu-tu-tu. Fim da ligação novamente. Parou por um momento. Polícia florestal... De repente, seria mesmo uma boa ideia. Ligou para o auxílio à lista. Anotou o número. Ligou em seguida. Um jacaré? Na sua varanda? Não se envergonha em atrapalhar o trabalho da polícia florestal, senhor? Perguntou a atendente. Mas é verdade. Tem um jacaré na minha varanda, caramba! Hum... Um momento, por favor - disse a moça. Saberia me informar se é um jacaré de fato, ou um crocodilo? Não. Parece jacaré. Sei lá! Qual a diferença? Um jacaré distingue-se de um crocodilo pela cabeça mais curta e larga e pela presença de membranas interdigitais nos polegares das patas traseiras. O senhor reparou algum desses detalhes? Membranas inter... o que? Digitais, senhor. Tenha a santa paciência! Tem um monstro bem na minha porta, que já quase me engoliu e você quer que eu repare nas membranas interdigitais – enfatizou - nos polegares? Bradou o rapaz. Desculpe Senhor, mas precisamos de detalhes para que a captura seja adequada à espécie. Está bem. Um momento. Vou olhar... Abriu novamente uma gretinha na porta, bem devagar, e deu de cara com o jacaré. Havia andado. Estava bem de frente para a porta agora. Levou novo susto. Fechou imediatamente. Alô! Pois não, senhor... Não dá pra ver. Ele está bem na minha porta, mas deve ser jacaré mesmo! Ajuda-me! Tudo bem fique calmo e não o alimente. Vamos encaminhar uma equipe à sua residência para efetuar a captura do animal. Informe seu endereço, por gentileza. É... Rua da Ladeira, número... Tu-tu-tu. Ligação encerrada. Que raiva! Discou novamente. Créditos insuficientes para completar sua chamada. Era só o que faltava. Tentou a cobrar. Não deu. Esperou que retornassem. Ninguém retornou. Esperou um pouco mais. Tentou uma nova ligação a cobrar. Negado. Em um ataque de fúria, atirou o celular contra a parede, fazendo-o em mil pedaços. Lá se fora suas chances de comunicação com o mundo lá fora, por um momento de burrice.

As horas passavam e o jacaré estava lá, deitado embaixo da sua porta. Fez menção de abri-la novamente para ver. Ao fazer barulho no trinco, o jacaré rosnou. Não sabia que jacaré rosnava. Foi até a cozinha, colocou água para ferver. Resolveu fazer um café. De repente o jacaré bateu fortemente com a cauda na porta, que balançou. Levou mais um susto. Estaria o jacaré faminto e querendo devorá-lo? Foi até a sala. Empurrou o sofá até encostá-lo à porta e firmá-la um pouco mais. Não sabia se resolveria, mas pelo menos o atrasaria, caso quisesse mesmo entrar. Ficou segurando o sofá contra a porta por um tempo. O jacaré não a empurrou mais. Voltou à cozinha. Passou o café. Bebeu um gole. Ligou a TV. Estava passando desenho animado. Há quanto tempo não assistia! Sentou-se. Vez ou outra olhava da parte de cima da janela do quarto para ver se o jacaré tinha ido embora. Ainda estava lá.

Não fez almoço. Ficou com medo de que o cheiro atraísse o jacaré para dentro de casa. Fez apenas um lanche. Comeu, leu um jornal velho, deitou-se um pouco, cochilou. Acordou horas depois e voltou à janela. Já era noite e o jacaré não tinha ido embora ainda. Não acendeu as luzes. Teve medo de que atraíssem o bicho. Deixou a TV ligada bem baixinho e ficou ouvindo o jacaré lá fora, andando e remexendo, vez ou outra rosnando, até que pegou no sono.

Acordou na manhã seguinte, assustado. Pensou que tudo não passara de um pesadelo. Levantou-se, olhou pelo alto da janela e não viu o jacaré. Foi até a porta, abriu-a cuidadosamente. Não estava lá. Abriu mais, olhou para o outro lado. Nada. Criou coragem, desceu o degrau até a varanda e olhou em direção ao pátio. Também nada. Foi quando olhou para o canto da área coberta e viu que não havia apenas um, mas dois jacarés. Um deles também o viu e correu em direção à entrada da varanda. Rapidamente entrou em casa e trancou a porta. Repetiu tudo o que fizera no dia anterior. Exceto a parte da pegadinha e das ligações (já que não tinha mais telefone).

No terceiro dia, viu que havia mais um jacaré na varanda e ficou ainda mais preocupado. Como faria para sair? Suas provisões eram escassas, e definitivamente, não queria morrer de fome ou devorado por um jacaré. Tentou se acalmar. Completava três dias de ausência. Alguém sentiria sua falta e o procuraria. Acionariam a polícia. Seria salvo. Ficaria famoso. Era tudo uma questão de tempo.

Depois de uma semana se passar e o sétimo jacaré aparecer, perdeu as esperanças. Ninguém o procurou. A polícia não chegou. Nada aconteceu. Novo na cidade, novo no trabalho, sem amigos, família distante e de raro contato. Ninguém percebeu algo de errado. Sem telefone, nem os cobradores poderiam ajudá-lo. E assim, os dias foram passando e ele ali, vendo os jacarés proliferando em seu quintal. Às vezes, abria a janela e ficava observando-os, horas a fio. Já não tinha tanto medo. Aliás, a cada dia que passava, sentia menos medo e mais empatia pelos bichos. Às vezes, sentia vontade de ser um deles. Fortes, temidos, destemidos, sossegados... Dias depois, assistindo TV, notou que haviam colocado jacarés na programação. Nas novelas, no jornal, nos programas de variedades e nos comerciais. Deviam ter aprovado uma lei de cotas para jacarés. Muito justo. São animais muito simpáticos, mas muito injustiçados pela aparência assustadora. Ficou feliz ao ver a novidade.

Numa dessas manhãs da nova rotina, acordou meio tonto, caminhou trôpego rumo ao banheiro. Ao olhar-se ao espelho, uma nova surpresa! Percebeu que também estava se transformando em jacaré. O rosto já era igual, os braços, as pernas... Até calda já tinha! Estranhou o fato de ser um jacaré bípede, mas logo percebeu que o processo de “jacarelização” ainda estava incompleto. E de qualquer forma, isso não seria problema para ele. O Zé Jacaré do desenho do Pica-pau também era bípede e não tinha problemas. O Wally Gator também se dava muito bem em pé. E assim sendo, resolveu testar a popularidade com seus colegas no quintal. Abriu a porta, olhou meio desconfiado, desceu o degrau. Andou alguns passos e notou que alguns o observavam; outros não estavam nem aí. A fim de evitar problemas, pôs-se de quatro e foi engatinhando em meio aos jacarés. Cumprimentou um, dois, vários... Arriscou puxar assunto com um grupo mais à frente. Logo, já estava enturmado. Que felicidade! Depois de tanto tempo, finalmente alguém para conversar. Amigos!

E assim, passou o dia entre os jacarés. À noite resolveu dormir também por lá, junto com seus novos companheiros. No dia seguinte, já era um jacaré completo. Sentia-se um jacaré nato. Havia muito tempo não se sentia tão bem! Estava de fato, feliz. E ficou ainda mais, ao ver que um vizinho também estava se transformando. Devia ainda ser bípede, pois o olhava por cima do muro. E também, ainda não falava jacarelês fluentemente, conseguia apenas grunhir. Mas era só uma questão de tempo e também seria um jacaré. Fique calmo e venha pra cá. Em breve, será um dos nossos, disse sorrindo ao vizinho. O mundo seria dos jacarés!

Horas depois, um susto! O portão da frente foi aberto bruscamente e por ele entraram homens vestidos de branco, com feições pouco amigáveis, carregando uma espécie de rede branca nas mãos. Um deles trazia um pequeno dardo. Foi aterrorizante! Os jacarés corriam para todos os lados e iam sumindo como por passe de mágica, e no fim, restou apenas ele. Deixaram-no sozinho. Covardes! Também tentou fugir. Não conseguiu. Foi logo agarrado. Tentou lutar, morder, dar rabada. Não compreendia o porquê daquela violência. Debateu-se até ser imobilizado por uns dois ou três deles e finalmente abatido por aquele que trazia o tal dardo. Apagou.

Quando acordou, estava em um lugar estranho, sem saber quanto tempo havia passado desde a invasão. Notou que tinha mãos novamente. Estavam presas nas beiradas de uma espécie de cama de ferro. Pessoas em volta o olhavam, em um misto de espanto e curiosidade. Talvez pena. Não sabia se as conhecia ou se elas o conheciam. Não compreendia a linguagem. Também não sabia se era de novo homem, se ainda era jacaré, ou se era um jacaromem – metade dos dois. Tentou se soltar. Queria sair dali. Debateu-se, gritou, rosnou... Até que chegou um homem com um daqueles pequenos dardos e o abateu novamente.

Assim foi, até ficar totalmente manso. Então, foi solto das amarras e, vez ou outra, podia andar pelos corredores e também pelo jardim daquele lugar estranho. Andava ereto, sem pressa, sem rumo, sobre os pés, igual aos demais homens e mulheres dali (ou ao Zé Jacaré), embora ainda não soubesse o que realmente era. Nunca mais soube. Dizem que se dividiu assim pelo resto da vida. Ora homem, ora jacaré, até virar planta. Coitado.

Desde que eu soube desta história, todo dia ao acordar, antes de fazer qualquer outra coisa, mesmo atrasado, vou até a porta, abro-a com cuidado e olho para ver se há um jacaré na minha varanda também.