Mais um

Quando perdemos a força, torna-se difícil o levantar. O desânimo, a preguiça seriam contornáveis, mas o golpe contra si mesmo, esse é algo difícil de exortar.

Qualquer palavra que eu disser no dia de hoje, desde a hora em que eu abri os olhos e tive que acordar, será para me sacrificar. A troca de olhares será a vergonha, a memória será o motivo da fraqueza e o futuro nada mais que um pesadelo por hora desconsiderado. Mesmo que das outras vezes em que isso aconteceu, eu tenha percebido que valeu a pena, que passou, que não há como evitar, não adianta, nessas horas eu sempre perco a força. É necessário, mas agora não há como entender, apenas posso crer. Crer que se trata de uma autocrítica.

Entrei no supermercado e cumprimentei o caixa. Mas, hoje, eu não fiz como das outras vezes e, quando entrei no supermercado, não esqueci da condição do caixa e da minha.

Não consegui me recolher no individualismo habitual, fantasiando-me de consumidor quando parecia impróprio igualar a vida e as condições de dois seres humanos. Andei pelas prateleiras e tudo me parecia caro, inacessível.

Talvez eu tivesse no bolso não as notas que me faltavam, mas as que eu sempre conseguia quando queria algo. Ou melhor, talvez eu tivesse no bolso a minha autocrítica, a minha censura que se esquecera das minhas vontades, questionando a minha relação com o caixa do supermercado. Enquanto permanecia imóvel frente aos produtos, a minha censura estava lá, medindo provavelmente o quanto a minha amizade com ele era vital para que fossemos sempre, consumidor e caixa, coisas que certamente preferíamos não ser, eu por vergonha e ele por necessidade. Parece mesmo essa a nossa diferença, a vergonha imobiliza e a necessidade convulsiona, mas não sei porque, não via nenhuma convulsão nele. Calado, saí com um adeus menos próximo que os cumprimentos dos outros dias, e sem comprar nada.

O caminho até a lanchonete da faculdade cumpriu aquele papel do esquecimento paulatino, que vai amenizando a convulsão a medida em que ela não transforma nada. Algo como a autoconsciência da impotência, que provoca como resposta, como ação, um pedido de um café e um salgado. Mas não seria tão fácil assim dobrar a minha convulsão. A concessão do meu alimento, sem dúvida, implicava no desprendimento com a mulher da lanchonete, que acordara bem mais cedo do que eu. Cada gole, a cada mordida eu me tornava menos apto para esquecer do pouco espaço que a minha convulsão possuía. Ao terminar o desjejum, eu parecia mais fraco e impotente. Não me restava mais nada, agora alimentado, aqui estou com a caneta e o caderno, escrevendo. Escrevendo diferentemente do tempo em que eu escrevia como se eu fosse eterno. Agora, cada palavra é um tiro, um passo, um tempo, uma arma contra todos e eu não sou eu, talvez eu seja todos, apenas mais um, ou nem isso.

Thiago Marx
Enviado por Thiago Marx em 07/10/2005
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