Psicografia nº 8 - Meus pés estão cansados

As coisas só parecem acontecer comigo quando vou ao centro (da cidade). Hoje, depois de muito andar por aquelas ruazinhas apinhadas de lojas e mãos latejantes, subi num ônibus qualquer, o calor estava insuportável. Passei pela roleta e fui sentar ao lado direito de uma senhorinha, em quem nem prestei muita atenção. E eis que, quando menos espero, ao virar minha cabeça para a janela, me deparo com a senhora, de corpo voltado para o meu lado, o braço direito passado por trás de mim e por cima do encosto do banco (a sua suavidade era tanta, que nem percebi quando ela o fez), fitando-me nos olhos: “oi... boa tarde...?”, foi o que disse; ao que respondi como é de se esperar, com um “boa tarde” igualzinho ao dela. Pensei logo que ela estava esperando minha licença para sair, mas vi que não se tratava disso, porque me veio com uma pergunta inesperada (tudo tão inesperado!): “você...”, e falava com uma voz baixinha, pausada, só para mim, “você crê em Jesus...?”. Bastou. Bastou isso para que minha mente entrasse em giro, meio em transe, meio sei lá o quê. Eu não acreditava que havia sido abordado daquela forma por aquela senhorinha fazendo uma voz só para mim. Respondi que não e ela me ensinou como se chama gente assim (só que na forma de pergunta). Bastou. Bastou isso para que minhas sobrancelhas se erguessem naturalmente, expressando meu vazio em relação ao que ela começou a falar. A sapeca dizia coisas meio desconexas umas das outras, sobre os homens, sobre uns códigos ou escrituras, sobre os homens transpondo os códigos, a terra esquentando, a terra pegando fogo, o fim da terra, o fim dos homens, “o ar que eles respiram está sufocando o mundo”, “e aí, hein? E aí?”. A essa altura, eu sentia meu cérebro pulsando através da nuca, uma coisa interessante. Eu estava acelerado. As sobrancelhas permaneciam ainda petrificamente erguidas, como se expressassem minha constante surpresa diante dos acontecimentos. Já tinha deixado de olhá-la há muito tempo, percebi que a senhorinha estava meio fora de si (é mesmo possível ficar meio fora de si?). Virei o rosto para frente (sobrancelhas em pedra); ela continuava a falar do meu lado. Houve momentos em que eu pareci não escutar, perdi muitas frases assim, provavelmente distraído com algum carro colorido que passou ou até mesmo com o cérebro a me pulsar. Veias a me pulsarem por baixo da pele suada (o calor era grande, o ônibus cheio). Até que a desconhecida decidiu parar de compartilhar comigo aqueles seus pensamentos suaves (deve ter-se ofendido com minhas sobrancelhas). Mas permaneceu serena, nunca perdeu a serenidade nem se exaltou; por isso eu penso que ela não se encontrava meio em si (é mesmo possível ficar meio em si?). Pelo canto do olho, notei suas pernas inquietas. A senhorinha havia parado de falar, tirara o braço de trás de mim, dispensara-me. Tive que deixá-la (felizmente, não precisei pedir licença), desceria logo, logo.

O cérebro continua pulsando, para meu alívio, só que com menos surpresa. Meus pés estão cansados; alguém me traga água!

Rosiel Mendonça
Enviado por Rosiel Mendonça em 25/07/2007
Reeditado em 07/08/2007
Código do texto: T579049
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