O vale da carniça

Ele elevou as mãos ao rosto como se fosse fazer uma prece e olhou para o céu.  O sol escaldante, mesmo aquela hora da manhã, marcava em sua tez todas as rugas que a idade lhe dera e muitas outras acrescentadas pelo sofrimento.

      Depois de sondar o céu com olhos lacrimosos, desceu vagarosamente o olhar para o lugar que procurava. O lugar conhecido como o vale da carniça.

      E era lá onde eles estavam.  Voando em círculos perfeitos, simétricos.

      Eram oito.

      Ele sempre contava, era um hábito antigo.

      Levantou-se com certa dificuldade, suas costas curvadas e as juntas grossas e retorcidas, agora, nunca paravam de doer. Era sempre um martírio. 

      Ajeitou o saco de aniagem nas costas, um saco vazio e sujo, mas que parecia conter o peso de toda a desilusão que ele carregava.

      Chamou o cão. Um sarnento, tão velho e alquebrado quanto ele, mais osso do que pele, e os dois trotaram arrastando os pés pela poeira da estrada. Faziam aquela caminhada todas as manhãs, logo ao nascer do sol, precisavam chegar antes do primeiro caminhão de lixo. Uma rotina já arraigada no tempo.

       Era dali que tirava seu sustento, das montanhas enormes de lixo, despojo da sociedade, manancial de quem nada tinha.

      O homem de poucas palavras, mas de muitos sorrisos naquele dia não sorria.

       Naquele dia sentia mais forte os beliscões da fome,  e de seu corpo esvaiasse  com impressionante rapidez o que restava de suas forças. Nunca imaginara que a fraqueza era morna e dormente, sorrateira e sensual.

      Percebeu que precisava deitar, apenas por um tempo. Logo se recuperaria. Não era sempre assim nos últimos tempos?

      E o lixo se fez leito.

      A carniça não lhe incomodava mais, como no início,  quando os engulhos o viravam do avesso. Agora o cheiro já não tinha mais o mesmo efeito sobre ele, suas entranhas ficaram imunes aquele cheiro de podridão,  de continuo ciclo de decomposição.

       O silêncio.

       A  repentina quietude que invadiu seu ser, era paz.

       Como se transcendesse a vida e a morte, a agonia e o êxtase.

       No alto, no azul do céu o círculo concêntrico dos urubus continuavam  na mesmice de sempre.

       Ao fechar os olhos pela última vez, ele sorriu.

      Era ali que seu corpo ficaria.

      Era ali que ele voltaria a fazer parte da mais antiga matéria orgânica.

      E entre a carniça e o enlevo, os urubus agora lhe pareciam anjos.

      Anjos que dançavam em perfeita harmonia uma última valsa para ele.

Tânia Mara Paula
Enviado por Tânia Mara Paula em 15/10/2016
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T5792967
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