Pele de coelho

isso tá lembrando muito minha infância com o pai, quando me levava pra caçar junto dele. sempre saíamos cedo, enquanto a lua ainda brincava de ser sol. ele dizia que perder o amanhecer dava azar na caça. por isso nunca nos atrasávamos para ver aquela bola de luz enorme que brotava do chão, do nada. eu sempre imaginava que o sol era como um côco caindo em câmera lenta do coqueiro. só que de cabeça para baixo. é claro. assistíamos aquilo tomando o café que ele mesmo fazia, colocava numa garrafa térmica azul. usávamos sempre copos plásticos e comíamos biscoito cream cracker. era o nosso ritual. um dia me ensinou a cortar couro de coelho. um que pegamos duas semanas antes do meu aniversário de treze anos, era marronzinho e se camuflava na terra facilmente. disse que eu tivesse cuidado ao esfolar, um movimento em falso e lá se fora o couro inteiro do animal. vê? ele tinha uma igualzinha a essa: skinner buck. clássica. devia ter uns vinte centímetros e pesava pouco menos que duzentos gramas. tinha um alce desenhado na lâmina. bem aqui, ó. é, eu sei, essa não tem. mas a dele tinha. faça o serviço imediatamente, falava imperativamente, se demorar muito corre o risco apodrecer. e jamais use outra faca se não uma específica para o serviço. água. sabão. e pronto! agora põe no sol, demora alguns dias para o curtimento. eu ouvia atentamente, com os olhos vidrados no que dizia. meu pai era foda. ele que me fez ser quem eu sou hoje. alguns dias depois, com o pedaço de couro pronto e perfeitamente limpo, me deu uns tapinhas nas costas e disse que eu era uma boa menina, que levava jeito pra coisa. essa faca foi o meu prêmio, o meu presente de aniversário. nunca me senti tão feliz. enfim! sinto saudades do pai. perdi o chão quando soube que havia morrido. assassinado em uma briga de trânsito. agora vê se tem lógica: justo ele, um exímio atirador. um cara forte. durão, como eu nunca vi igual. morrer com um projétil de uma ponto trinta e oito alojada entre os lóbulos occipital e o pariental do cérebro. antes de cair no chão ele deve ter sentido como se estivesse dentro de uma lata sendo atingida por uma barra de ferro, com um zumbido que se repetia feito sino. ao menos é assim que eu acho que se sentem pessoas que levam um tiro na cabeça. o que você acha? deve ser atordoante. oi? atirar em você? que isso, jamais faria um coisa dessas contigo. somos parceiros, lembra? estar aqui há quase três dias nos eleva ao título de quase íntimos. e é óbvio que eu jamais faria algo assim com alguém que é quase íntimo. e outra, está vendo alguma arma por aqui? pois é. não vou atirar em você, nem se preocupe. pode confiar. hm, se você vai morrer? provavelmente. sim, hoje. é, mas antes irei explicar o meu plano. tipo aqueles vilões de filme americano, que contam o que vão fazer antes de fazer só pra dar emoção e sentir o poder nas suas mãos. pois é. a merda - pra você - é que ninguém vai vir te salvar. estamos muito distante de um rastro de gente. sabe, eu pensei em várias maneiras de fazer isso, pesquisei no google a melhor forma de fazer alguém sofrer, mas as coisas que têm por lá não são nada emocionantes. os internautas precisam ser mais criativos. passei tempos e tempos pensando, quando decidi fazer o simples. afinal, fazer o simples é o novo pretinho básico. e pense comigo: essa faca sempre esteve comigo, nada mais justo do que ela me ajudar mais uma vez. mas deixa eu te explicar como, eu li isso num blog. existem vários pontos sensíveis no corpo, e que normalmente os cortes que atingem as artérias não possuem reversão, geram uma hemorragia rápida e puft! a principal delas é a aorta, que fica mais ou menos daqui até aqui, eu acho. uma perfuração no tórax seria fatal. mas aí pensei, pô, essa faca é pequena e vai ser foda acertar a aorta. então, passei pra segunda opção: a jugular. sabia que a maioria dos predadores, instintivamente, mordem a presa e perfuram justamente essa artéria? achei fascinante. os clássicos latinos usavam a palavra jugulador como sinônimo para degolador. mas fui pesquisar, e degolar alguém dá muito trabalho, então, focaremos apenas em cortar a artéria. ah! como eu já expliquei antes, o que vai rolar contigo é que nem se eu cortasse a aorta: hemorragia e estado de choque. provavelmente vai doer um pouquinho. mas leva menos de dois minutos pra você ir dessa pra melhor. eu pensei em comprar um protetor facial, daqueles tipo de jardinagem, pra protejer do sangue e tal, que espirra pra cacete, mas já viu o preço daquilo? sem falar que é enorme. ia ocupar muito espaço na bolsa. aí eu passei numa daquelas lojas de departamento e encontrei essa máscara maneiríssima do sherk, baratinha. olha! pensei que daria um tom mais amigável pra coisa também. dizem que o clima costuma ficar tenso e precisamos descontrair. ah! não contei a melhor parte. eu nunca fui boa em biologia, sempre dormi nas aulas do professor neivam e por isso decidi não ser tão escrota com você. pra não perdermos muito tempo comigo tentando achar onde diabos é a jugular, e ficar cortando um monte de coisa a toa, vou retirar todo couro região onde o google imagens disse que fica a bendita. só então, quando eu encontrar a artéria correta e tiver a certeza mais que absoluta de que é realmente ela, corto. combinado? relaxa, eu sou boa nisso. lembra? o pai disse que fiz um bom trabalho com o coelho, e de lá pra cá eu treinei bastante. tudo vai sair direitinho. talvez essa parte nem doa tanto. prometo fazer o possível. então, preparado para começar?

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 08/01/2017
Reeditado em 08/01/2017
Código do texto: T5875470
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