Cheiro estranho de rua vazia

chove. e eu adoro esse clima típico da aurora natalense. em que a temperatura costuma baixar nos primeiros minutos do alvorecer, mesmo o sol do meio dia deixando a cidade febril. o ventilador sem as grades da frente que leva poeira para minha garganta roda em velocidade dois. o resto do pão com queijo e café com leite da madrugada ainda aguardam carona de volta para a cozinha, postados em cima dos quatro livros que me falta vender. as chaves com foto dos meus pais abrem a porta da rua, o carro do lixo não passou. todas as casas da travessa em que moro estão com o lixo na porta. o meu fede a comida estragada. talvez a gato morto. ou rato. caminho. as ruas do meu bairro não fedem, mas não possuem nada de deslumbrante. muros sem reboco. calçadas irregulares. esgoto na rua em frente à padaria com o pior pão que já comi. dobro na esquina e entro em uma viela ainda mais desarrumada. não há ninguém em sua extensão. e não se engane, não tem nada a ver com a hora. as pessoas deixaram de estar na rua por aqui. caminho. algumas portas abertas. homens barrigudos prostrados no sofá de casa, com o controle em cima de suas dobras. cachorros latindo para o nada. cheiro de café. a esta altura do campeonato a leve chuva já se fora. o calor começa a apertar ao pé do ouvido. embaixo do braço, a transpiração ameaça manchar a camisa cinza. apresso o passo. estou à menos de duzentos metros do meu destino, quando vejo o primeiro ser humano do dia que me parece vivo. ele cambaleia em linha semi-reta. talvez reta para ele. aparentemente não me vê. magro, cabelos mal arrumados, deve ter a idade do meu pai. a camisa de botão está molhada. apenas uma sandália havaiana está no pé. ele para, senta no meio fio e vomita com a cabeça entre as pernas. aquilo não foi um vômito qualquer. e sim um daqueles que levam toda uma história de vida juntos. eu passo por ele tentando ser discreto, provavelmente só vira meu pé. mas ainda sim, com toda dificuldade do mundo, e com um sotaque quase gringo, entoa: bo-mdi-a! caminho. ao chegar de frente a padaria que costumo comprar, não aquela do esgoto na frente, noto a placa: mudamos para a avenida itapetinga. desculpe-nos o transtorno. merda! essa avenida é longe pra cacete. prefiro comer biscoito à comprar naquele outro lugar. volto para casa frustado. ainda sem ver nenhuma outra pessoa, se não o educado senhor do vômito, que continua com a cabeça entre as pernas, me deixando em dúvida se estava acordado e tentando vomitar mais uma vez. passo apressado e ouço novamente um bom dia. não respondo. ao dobrar a rua, novamente percebo a imensidão de nadas. me sinto seco. talvez mais vazio que as garrafas do meu amigo bêbado da rua anterior. pensei que morar sozinho me faria bem. pensei que conviver comigo mesmo fosse fácil. besteira. minha vida tem se resumido a insônias noturnas, ócio diurno e punhetas ao crepúsculo seguidos de um imenso desejo ao suicídio. não largo o computador. não saio com os amigos. na verdade, não tenho mais amigos. caminho. subo no meio fio e me equilibro na fileira de paralelepípedos. de uma lado, areia. do outro, esgoto. mas eu não caio. continuo até dobrar na rua de casa. ainda não encontro pessoas. ainda. paro de frente ao portão da casa nove dois. procuro a chave em um dos bolsos. respiro. ouço barulho de freio de bicicleta. não preciso me virar para saber o que vêm a seguir. gelo por dentro. fazia tempo que não aconteceu algo assim comigo. talvez três ou quatro anos. paraliso. mas ouço a voz maliciosa me bater a nuca: passa o celular, boe, e não olha pra trás se quiser ainda entrar em casa. passa o celular e a carteira. com pressa e muito medo, puxo o celular do bolso direito. sempre lá. a carteiro com sete conto no bolso de trás. e sem olhar, posiciono-me para entregar. ele agradece com um sorriso maldoso, talvez nem tivesse uma arma na cintura. ouço inclinar o corpo para sair dali com destreza. mas antes de sumir definitivamente da minha vida, profere um caloroso: que cheiro de rato da porra, filho da puta. deixa de ser porco, carai, e tira esse lixo daqui, o que seus vizinhos vão pensar? ele some. respiro aliviado. RATO! eu penso eufórico. EU SABIA QUE ERA RATO!

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 08/01/2017
Código do texto: T5875529
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.