Cabeça de ovo

NÃO ENTENDO! vociferou o bigodudo. e continuou de maneira firme, me olhando com os olhos semicerrados. REPITA DENOVO, PORQUE ATÉ AGORA NÃO ENTENDI PORRA NENHUMA DO QUE TU QUIS DIZER. ainda atordoado com a situação (e com o pleonasmo da frase anterior) me ajeitei na cadeira de madeira parecida com aquelas belezuras desconfortáveis qu’eu usava no ensino médio. ereto e calado, pensava em c.a.d.a.p.a.l.a.v.r.a que iria usar, um substantivo sobrecomum entoado de maneira equivocada e eu ganharia uma passagem direto para alcaçuz enquadrado no art. 129, segundo meu amigo de infância recém passado na OAB depois de cinco anos tentando, que - aliás - já estava vindo pra cá me socorrer. tu corre o risco de pegar até cinco anos, falava rapidamente por telefone. eu tava era fodido e mal pago até a próxima encarnação. o policial que me interrogava era uma figura engraçada, tentava passar seriedade e experiência, mas aqueles bigodes de Tom Selleck que só ficam bons mesmo no Tom Selleck não ajudavam em nada. andava um pouco curvado, meio cansado. provável se aposentar nos próximos anos; sua paciência (ou a falta dela) já era um sinal claro disso. BORA, RAPAZ! EU NÃO TENHO O DIA TODO. bom, e-eu, éé--. gaguejei e continuei: ovo, doutor. OVO? sim, ovo cozido. um longo silêncio se estabeleceu depois do meu pigarro. tudo foi culpa do maldito ovo cozido. COMO É? VOCÊ TÁ DIZENDO QUE ARMOU TODA ESSA BAGUNÇA POR CAUSA DE UM OVO COZIDO? sua voz engrossava a medida que sua cabeça se confundia com o meu discurso. um não. foram vários. mais especificamente, nove por dia. no café da manhã, no lanche e até na jantar. vê se pode. n-o-v-e. multiplica isso por um mês de dieta, doutor, multiplica. insinuou responder, já negando com a cabeça, mas o interrompi. duzentos e setenta. duzentos e setenta e eu já não aguentava mais. ESPERA AÍ, O QUE O GARÇON DO BETO`S BAR QUE TÁ INTERNADO COM AFUNDAMENTO NO CRÂNIO TÊM COM ISSO? POR QUE DIABOS VOCÊ FEZ ISSO COM O CARA? eu perdi o controle quando mastiguei e percebi que o meu pedido havia sido trocado por um escondidinho vegetariano de ovo cozido com soja. pô, cara, era tão simples: escondidinho de carne. d-e-c-a-r-n-e. aí pronto. uma coisa levou a outra. a irritação levou minha mão ao litrão de skol que tava do meu lado, que levou direto para a cabeça do garçon barrigudinho. caiu na hora. eu tava fora de mim, doutor. não queria ferir ninguém, sabe?, nunca matei nem uma mosca. não conseguia conter meu choro. eu só queria comer minha carne em paz. o policial me olhava atônito. agora com um semblante mais manso, provavelmente pensando que eu não tinha um pingo de juízo no lugar. puxou a cadeira da frente, sentou e com uma voz um pouco baixa, falou. isso que você me disse é muito grave. temos alguém que não tem nada com a sua história numa sala de cirugia nesse momento. eu realmente não sei o que fazer com você, preciso fazer algumas ligações e conversar com o seu advogado quando chegar, no mais, espere aqui. preciso realmente fazer algumas ligações. levantou, já com o celular na mão, e antes de sumir completamente da vista, pude ouvir sua voz ao telefone. é doido, Borges, é completamente pirado. manda um psiquiatra pra cá que vamos precisar. e não esquece de mandar o Araújo fazer uma visitinha de madrugada na cela dele, vamos ver até onde esse doido é doido mesmo. estremeci e a porta bateu com força, feito o cacetete que me atingiu a cabeça por volta das duas e trinta e sete de ontem, enquanto eu berrava há horas para que tirassem (pelo amor de deus) aquele prato de cuscuz com ovo da minha cela. agora sinto o chão gelado me cobrir o rosto e o molhado do meu sangue me lavar o corpo. estremeço mais uma vez, pois ainda sinto cheiro de ovo cozido por toda a parte.

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 30/01/2017
Código do texto: T5897473
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.