Uma outra estação

Camila Lobo estava entediada com tudo. Com a família, com os amigos, com as guitarras que sempre desafinavam e as carteiras de cigarros que não duravam um dia perto dela. Estava cansada até dos livros, da música, de toda essa obsessão pela arte, e resolveu se perder por aí. Passou em frente ao Void e pela primeira vez não teve vontade de entrar. Percebeu o quanto tudo aquilo era desinteressante, tudo era apenas uma manobra para as pessoas saírem por um momento de suas vidas ociosas. Quando passou pela porta, um grupo de roqueiros a chamou.

"E ai Camila, não vai tocar hoje?"

Disse "não" e continuou andando. Pelo canto do olho viu seus olhares confusos. Afinal, o que eles queriam? Vê-la no palco sem dar a mínima para sua música mas apenas para seu corpo? Como se ela tivesse um. Eram as roupas e as calças que eram um pouco apertadas e a deixavam com um decote mínimo e a faziam parecer que era gostosa, quando na verdade ela era uma tábua. E gostava de ser tábua. Não estava nem aí para as toda-peito-e-bunda que faziam de tudo para parecerem gostosas, não pela sua saúde, não para se sentirem de bem consigo mesmas, mas para faturar um pau qualquer todas as noites, porque sem sexo elas são só uma casca vazia, e pra isso elas iam ao Void, escondidas dos pais.

Como se Camila fosse uma santa. Até seria, se levasse em conta os princípios idiotas estabelecidos pela sociedade patriarcal. Camila tinha feito quase de tudo mas nunca tinha realmente trepado. Pra valer. Como se algum cara tivesse feito por merecer o caminho entre as pernas dela. Nenhum pau no mundo valia a imensidão por trás de seus olhos.

A cena continuava acontecendo no metrô ainda em fase de construção. Havia os vendedores, as putinhas viciadas e os caretas que queriam experimentar por curiosidade. Os policiais vinham, pegavam sua dose diária e saíam. Ninguém viu ou falou com ninguém e todos saem felizes. Camila conhecia como funcionava porque ela mesma fazia parte da cena e todos a conheciam. Um desentendimento com uma suposta amiga a salvou de se tornar uma viciada.

Pegou um ônibus e se sentou atrás. Estava cansada das drogas. Das bebidas. Realmente, de tudo. As pessoas se perdem porque pensam que as coisas boas só podem ser proibidas ou fazerem mal de alguma forma. Camila gosta de falar com os gatos e os cachorros das ruas e sempre leva ração para os que encontra, e isso a faz se sentir bem mais do que qualquer outra coisa. Não precisava de drogas para ser feliz.

"Feliz é algo relativo", pensou enquanto descia do ônibus e caminhava em direção à ponte da beira mar. Os jovens alegres e saudáveis tocavam violão na praia. As garotas os admiravam. Era algo triste de se ver. As pessoas só queriam algo para se sentirem bem. Camila não os culpava mas foda-se. Pelo menos uma vez na vida queria poder estar realmente errada. Queria parar de olhar pras alternativas. Queria parar de pensar em outros lados para a mesma moeda. Estava cansada de tudo e não queria se desculpar com ninguém.

Tirou o Rimbaud da cintura e o abriu em meio ao vento. As ondas quebravam por cima das outras e era incrível. Como ele a entendia! Sua vontade de fugir de tudo e ser feliz em meio ao nada, sua rebeldia de dançar descalço sobre a lua e bebendo vinho a noite toda, era tudo o que Camila sempre quis. Momentos felizes. Não queria felicidade. Não queria rotina. Não queria se abrir com quem não merecia e nem tinha tempo para isso. Não tinha sua vida planejada e nem o pretendia fazer. Escrevia poemas ruins, e daí? Não queria mostrá-los para ninguém. Não precisava que as pessoas a admirassem como se ela ou seus poemas fossem apenas outras saídas para preencher o vácuo em suas vidas. Queria viver de forma louca e absurda. Queria invadir o inferno e dançar pelada com Deus e o diabo. Queria chover as tempestades para que caíssem sobre as pessoas e molhassem seus ternos e vestidos caros. Queria fazer com que as pessoas vivessem. Que fossem livres. Que parassem de olhar pra porra do celular enquanto conversavam. Que tivessem alma novamente. Havia tanto no mundo para ser descoberto, para ser sentido, de todas as formas. Por que desperdiçar tudo isso em celulares caros e conversas vazias com pessoas cuja amizade só existe por conveniência?

Sem pensar em mais nada, Camila tirou toda a roupa, jogou o Rimbaud no chão da ponte e pulou na água. Se deixou levar pelas ondas. Viu as nuvens girando e o mundo caindo sobre seus olhos. Gritou até sua voz falhar. Desenhou anjos da neve em meio à água. Nem viu as pessoas apontando para ela e dando risadas. Estava feliz demais para se importar com qualquer outra coisa. Começou a nadar contra e a favor da correnteza. Queria que sua vida não fosse apenas fotografias, mas da própria vida em si.

Camila Lobo finalmente estava feliz e o Sol começava a se por.

Arthur Rabelo
Enviado por Arthur Rabelo em 30/01/2017
Código do texto: T5897530
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.