A Pagadora de Promessas

O velho ônibus chacoalhava na estrada sinuosa, esburacada e poeirenta. No interior do veículo, o calor era insuportável, sufocante. Todas as poltronas estavam ocupadas - mas contrariando uma plaqueta de metal afixada na cabine do motorista, onde se lia; "Lotação Máxima: 50 passageiros" - mais de duas dezenas de pessoas em pé, se espremiam ao longo do corredor daquela chaleira sobre rodas.

O suor enxarcava meu corpo e um odor nauseabundo infestava o ambiente. Tentei cochilar um pouco, mas - alguns segundos depois - impaciente, abri os olhos, consultei o relógio e vi que os ponteiros marcavam meio dia e meia. Tive a vaga impressão que o tempo havia parado. Aquela parecia uma viagem sem fim ... Afastei com a mão, a desbotada cortina da janela de vidro, e arrisquei uma olhada lá fora. A paisagem era desoladora. Vislumbrei um céu impiedosamente azul, sem nenhum fiapo de nuvem; o sol escaldante e abrasador castigava sem dó a caatinga fantasmagórica e esturricada que desfilava num ritmo alucinante diante dos meus olhos.

Vez por outra, surgia de chofre, o esqueleto reluzente e macabro de algum animal que provavelmente havia morrido de sede. Um fato corriqueiro aqui nos confins do sertão, que se tornava uma verdadeira festa para os urubus, que passeavam sobre os restos mortais das vítimas da seca com seus bicos aduncos e suas longas pernas cinzentas, se regalando em repasto. Em meio àquele mundo sem vida e sem côr; surpreso, pude ver um pé de mandacaru que verde e florido, resistia heroicamente à longa e cruel estiagem.

Entediado, bocejei longamente e fechei os olhos mais uma vez, tentando dormir um pouco. Porém, sem êxito ... De repente, quebrando o pesado silêncio do ambiente, um casal que viajava na poltrona logo atrás de mim, deu inicio a um diálogo bizarro:

- ... e a senhora é de onde?

- Eu sou de Uruburetama.

- Urubu ... o que?!

- U-RU-BU-RE-TA-MA. Interior do Ceará.

- Ah! Entendi ...

- Em Tupy- Guarani significa "Ninho de Urubu".

- Então quem nasce lá, é ...

- Filhote de urubu.

- ... !!! Interessante. A senhora tem parentes aqui no sertão da Bahia?

- Não, moço. Eu vim pagar uma promessa.

- É mesmo?

- É, sim. A Santa Cruz do Monte Santo é milagrosa. Cura tudo quanto é doença, tal como ispinhela caída, dor nos quartos, pé dismintido, moleira mole, quebranto, tosse de cachorro, dor no estombo, passamento, friêra, pereba, remela no zói, gastura, dor de viado, pano branco, catarro nos peito, bichêra, bicho de pé, fastio, dor no espinhaço, bucho quebrado, unha fofa, berruga, difruço, caduquice, papêra e até tumô maligno, entre outras.

- Quer dizer que a senhora já esteve aqui antes!

- Já, meu filho! Essa é a décima promessa que eu venho pagar, só esse ano.

- Décima promessa?!

- Isso mesmo. Mas eu já fui também a Bom Jesus da lapa, Juazeiro do Norte, visitar a estátua de "Padim Ciço", Nossa Senhora Aparecida do Norte e ...

- Cruz-credo! Exclamou - incrédulo - o interlocutor.

E dessa vez, eu vou subir a serra da Santa Cruz de joelhos e com uma pedra na cabeça.

- De joelhos ... pedra na cabeça?!

- Sim. E daí, moço? Eu fiz uma promessa, e devo pagar pela graça alcançada.

Bem, se por acaso, a senhora machucar as pernas e ter que amputá-las, é só fazer outra promessa ...

Finalmente, vencido pela modorra, fui gradativamente envolvido por um leve torpor e acabei adormecendo. Então, sonhei que eu era um atarantado médico cubano com destino à Monte Santo, tentando entender o significado dos nomes de tantas doenças, que não são encontrados em nenhuma nomenclatura médica de qualquer idioma desse planeta.

Carl Ribeiro
Enviado por Carl Ribeiro em 06/02/2017
Reeditado em 07/02/2017
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