Ser da Noite - III
É madrugada.
A neblina cai como um véu gelado sobre a pequena cidade de Santa Luiza e no alto encoberta pelas nuvens a lua fulgura como uma minúscula moeda de prata.
Ao longe uma mistura de sons preenche a noite afugentando o silêncio.
Numa cama de casal que outrora aquecera dois corpos um homem de aparência desgastada, poucos cabelos e olhos fundos se levanta, suspira, esfrega os olhos... Sente como se o mostrador digital caçoasse dele na escuridão. Fantasmagóricos números azuis dizem ser ainda uma e quarenta e quatro. Não dorme bem há alguns meses. Suas noites se resumem a deitar-se às nove horas e acordar antes da meia noite, deitar-se novamente acordando mais cinco ou seis vezes até o amanhecer.
Essa, entretanto, é uma noite diferente, há sons ecoando ao longe se unindo a outros mais próximos formando uma desorganizada orquestra de gritos desesperados e ele sabe que se trata de prisioneiros não muito longe dali. Devia ter pena deles, mas não é o que lhe ocorre: Detesta-os e não raro irá argumentar para si próprio que essa noite seria a primeira de muitas bem dormidas que lhe viriam pela frente. A morte de Caroline, oito meses atrás finalmente estaria sendo superada, não esquecida, isso nunca, porém guardada no fundo da memória onde incomodaria vez ou outra como um espinho pequenino. Entretanto, aquela cacofonia de gemidos trazida pelo vento...
Deitou-se procurando concentrar-se em algo e aproveitando-se que os gritos afastaram-se. Como fantasmas inquietos, levados pelo vento, foram perturbar outros insones. Os pensamentos vieram em um turbilhão: “Terá de levantar às seis e meia e...” afastou-o. “Na sexta a noite estará livre e em cartaz está aquele filme...” “um bom livro a noite lhe afugentava o sono por isso...” “ovos mexidos no café da manhã, torradas e...” “há uma cidade próxima onde dizem haver uma casa que é habitada por...”, “aquele filme antigo, os caça-fantasmas tem uma trilha sonora...”, “Caroline era ateia e de fato soubera viver como...” adormeceu.
A noite seguiu tecendo sua mortalha gelada sob Santa Luiza. Os gritos irracionais aos poucos foram se calando engolidos pelo silêncio dominador. Em poucos minutos somente roncos e sons de respiração podiam ser ouvidos no canil Belmonte.