o ultimo passageiro

“0 última passageiro,” por Eraldo júnior

Noite fria e chuvosa de um miserado outono que passava, ia permeando o solo mais uma vez na quinta noite consecutiva de chuva. Já havia Chovido, em dez dias, mais do que o volume previsto para todo aquele mês. As aguas engendravam a fúria que o céu sentia pela quantidade de gás carbônico que ela absorvia. A fúria era tanta que crateras eram abertas tão fáceis, que quase não esboçava resistência. Carlos odiava aquele tempo de céu tenebroso e escuro de chuva, porque precisaria trocar a suspensão do carro mais rápido, contudo amava olhar a chuva cair da varanda e fumar seu cigarro preferido, Derby azul.

Uma relação de amor e ódio paradoxalmente se instalava. O charuto e o copo americano de conhaque era sua companhia, mas nem sempre foi daquela forma. Tudo mudou da água para o vinho. Seu charuto e o copinho de conhaque, que tinha ganho da irmã, tinha se tornado amigo inseparável depois que perdeu o emprego no serviço público. Um Ex funcionário da enfadonha e vagarosa máquina estatal que, por fraqueza ou ironia de sua burrice, havia desperdiçado dez anos de sua vida no serviço público por cometer um crime de peculato. Seu temperamento era explosivo. De lá pra cá, gradativamente, como uma metástase de câncer, seu tempo era consumido com o excesso de trabalho que sugava sua vida. Ás Vinte horas semanais do seu serviço no estado, foi trocado por sessenta horas de um serviço autônomo de motorista particular que conseguiu. Outro dia ele não suportou o desaforo de um passageiro e bateu nele até a sua raiva passar. Demorou. Quinze minutos de pancada e ele ainda nem fazia menção de parar. Houve uma mudança drástica de vida: de vagarosa e boa, a intensa, turbulenta e mediana. Energia de vida significava dinheiro agora. O seu estilo de vida precisou ser mudado, ou melhor, tirado a força pelo seu erro. Antes do sol nascer, ele já teria que estar sobre a planta dos seus pés, os mesmos que iriam servir nas próximas treze horas pra apertar os pedais do possante que cortava a cidade em todos os sentidos: de norte a sul, leste a oeste de alagoas. “eu odeio a merda desse tempo”, ele ia resmungando em cada buraco que caia... Por mais cuidado que tivesse com o seu carro, cairia em um buraco. Aquilo parecia ser a chave para abrir o seu acesso de fúria.

Luzia, sua esposa, de olhos fundos e cabelos arrepiados, que de segunda a sábado vestia a mesma roupa, o velho vestido azul. Tudo tinha se transformado depois da chegada do primeiro marido. Só decepção de uma menina que sonhava com casamento. Vinte dois anos e já colecionava uma decepção, a maior de todas para ela. Aos domingos ela vestia outro vestido para ir à missa. Era sua diversão. Ouvia a liturgia mas rezava mesmo era para que a missa findasse pra conversar com as amigas sobre a receita de bolo que todo mundo adorava. Não tinha outro proposito. Ela escondia sua incredulidade. Só iria expor tudo o que pensava se estivesse louca. Tinha a consciência que se isso viesse à tona tudo que pensava, ela seria excomungada, escorraçada, mais rápido que a volta do messias, como está escrito. Luzia se achava o máximo pelas receitas de bolo e a calda impecável de caramelo. Quem comia o bolo de luzia, não se arrependia. Por mais que passasse a receita para que fosse feita por outras mãos, nunca, por mais que tentassem cem vezes, não ficaria igual a de luzia. Uma receita ímpar. Mas as suas feições nada lembrava a moça que ela era cinco anos atrás. No seu tempo de miss alagoas. A barriga sequinha tinha se transformado em uma barriga imensa, que ficava escondida embaixo do camisolão que agora denunciava uma gordura despojada que foi adquirida pelo descaso com a vida depois das desventuras do primeiro casamento. Parecia ter perdido o gosto de viver. As lembranças do outro era tão forte quanto a tristeza que ele deixou. A vergonha de ser trocada era sentida por luzia desde então. “Duas de fermento e três de açúcar...” Ia jogando cada colher dos ingredientes, enquanto ouvia o rádio no último volume lembrando dos tempos de infância, quando seu pai levava ao parquinho... as lembranças boas estão sempre bem aguçadas e podem ser visitadas há anos depois. Nem sempre ficava bom. A cozinha era seu laboratório. O medo da repetição do fracasso fazia ela parar no tempo, como se aquele instante de pensamento pesasse tanto que não conseguisse chegar a tempo para desligar o fogão... A sorte para as receitas ruins, que não eram poucas, era zafira, uma vira-lata fujona e briguenta que parecia ter aprendido a personalidade do dono. Já tinha tentado exorcizar de tudo que era jeito parte dos seus pensamentos. Tinha os mais íntimos que só ela sabia. Falavam que era coisa do encardido. Outro dia, Carlos Vociferou palavras horríveis e externou toda a repulsa que sentia por aquela aparência descuidada da pobre da mulher: “sua baranga louca, larga de fazer bolo e vai se cuidar. Tratar dessa cabeça ai”, dizia Carlos para diminuir luzia na discussão. Luzia ouvia tudo calada. Com toda a calma de quem tenta dá certo mais uma vez. Mas Ouvir aquilo arranhava a alma cândida de luzia. Não existia outro argumento para diminuir luzia se não este, pois sua amabilidade era tanta que tomava conta daquele cubículo de dois cômodos, como se todo o extinto materno ficasse preso aquela figura gorda e indefesa do esposo.

Carlos havia partido há dez horas atrás para trabalhar em seu gol 2008... gostava de ter a atenção de luzia para contar todas as histórias do seu dia.

-luzia, cheguei! – anunciava Carlos a sua chegada, enquanto luzia estava posicionada com cabelos soltos, a porta do quintal falando com a zafira.

- oi, meu filho, como foi seu dia? Tudo bem? E a gasolina está o mesmo valor ou teve um acréscimo hoje?

- está o mesmo valor. Não baixa mais. A tendência e subir.

- um absurdo esse aumento que o governo deu... estamos pagando a conta desse filho da puta.

-pois é. Mas conversa não enche barriga. Temos o que pra comer...?

Toc! Toc! Toc!

O diálogo foi interrompido por murros na porta de madeira. O som que era produzido pelas batidas transparecia desespero de quem espera encontrar alguém o mais breve possível. Carlos Jogou os talheres em cima de umas quinquilharias que ficavam na sala, por trás do sofá. Ao abrir a porta, viu um senhor de cabelos negros que gesticulava para que ele entrasse e fechasse a porta. A princípio Carlos não obedeceu, mas quando viu que ele estava armado, Carlos tremeu feito criança que está frente a frente, indefeso, com o seu pior monstro. A máquina de fazer defunto que ele via nos noticiários da TV estava agora na mão de um estranho que não estava ali para defender ele de algum perigo. “Deita os dois que eu só vim pegar o que é meu”, falou o estranho que tinha o seu rosto escondido pela má iluminação da casa. Ninguém sabia do que se tratava. O casal que ali vivia era integro, pacato, e acima de qualquer suspeita. No agasalho daquele estranho poderia ser visto um slogan de um time do interior de alagoas.

- pela amor de Deus, não faz nada com a gente. Leva o que você quiser. -gritava luzia desesperada para o estranho que há cinco minutos estava em sua casa como se fosse o anfitrião. Aquilo parecia uma eternidade. Luzia lembrava do filho que nunca tivera, mas que sempre quis ter... de tudo que foi vivido. Sua vida agora valia um segundo... um puxão no gatilho...

-quero vingança. Esse senhor me bateu no domingo. Ele me disse que era sua última corrida. Não estava aguentando de estresse. E bastou cair em um buraco para atribuir ao meu peso. Seu verme. Você nem me conhecia para me espancar daquela forma. - gritava o estranho eufórico como se estivesse se drogado bastante, horas antes de chegar, buscando coragem para fazer aquele ato.

Só então Carlos conseguiu recordar do último domingo, com muito esforço. A mão esquerda tatuada e o real faltando. Foi o estopim da sua fúria. Isso ele não tinha contado a luzia. Sabia que a mulher não apoiaria aquela surra por um real. O motivo era ínfimo demais. Uma surra por dez confeitos de iogurte. Esse era o valor. Agora luzia se tornara refém do real mais maldito de toda a sua história... na mira de uma arma por um real.

-Meu senhor, me desculpe. Não me faça mal por isso, minha esposa está gravida. – Carlos suplicava como suplicou no tribunal para não perder o emprego no dia que foi pego roubando. Luzia se surpreendia. Nunca viu Carlos, o homem tão másculo que ela se apaixonara, falar como uma marica.

-Eu não irei perdoar o senhor. Vou dá duas opções de escolha: escolha morrer sozinho, como homem, e pague pelo seu erro. Ou leve sua mulher e seu filho junto para o além com você. Eu vou te matar, seu maldito. Desalmado. Você não podia ter me batido daquela maneira. Eu expliquei a você porque o real estava faltando. Prometi te pagar na próxima viagem e o senhor permaneceu intransigente e truculento. - Aquele homem tinha comprado, com os últimos vinténs, a última refeição que o filho desejava. Marquinhos estava em estado terminal de câncer. Uma luta que terminava após cinco longos anos de sofrimento. Parece que os problemas dele chamavam outros problemas. Já não bastava perder o filho, agora teria que ser surrado por um estranho.

Luzia olhava para Carlos cada vez mais apreensiva. Ela tinha ouvido bem a proposta do ofendido que agora queria vingança: “ESCOLHA SE VOCE QUER LEVAR A MULHER...”, aquilo ressoava na cabeça de luzia. Ela ficava cada vez mais paranoica com a morte que estava logo ali, em um puxão de gatilho. Agora só podia pedir clemencia. Ela viu que agora não era hora de criar inimigos. Acreditar em Deus, naquela hora, não mudaria em nada o seu destino que parecia estar traçado se ele não existisse.

-Vou perguntar mais uma vez e não quero demora na resposta. O tempo está acabando! – Carlos tinha o poder de escolha. Escorria feito água corrente pelas mãos. “Você já está condenado para o além..”, Carlos chorava sem parar desde que ouviu isso. Ainda teria que escolher sobre a vida de luzia. A morte não é fácil para ninguém. Aos avisados e aos desavisados é difícil. Carlos fazia parte dos avisados. O seu último passageiro do domingo perdeu o filho desavisado. Foi visitar marquinhos no hospital e encontrou-o em cima de uma pedra fria, sem vida. Em um exame de rotina descobriu que o filho era vítima de uma bomba relógio. Um câncer. Nunca mais marquinhos voltou para casa. Agora ele queria justiça. Nada mais importava. Encheu o tambor do revolver com seis munições e disse “já chega, irei acabar com isso agora.”

Carlos, ouvindo isso, correu pela casa. Não quis decidir sobre o futuro da mulher. Deixou por conta da sorte. Um disparo. Gritos. A voz da mulher ecoava pela sala. O seu passageiro corria atrás, caçando ele nos cômodos. “Apareça, seu desgraçado. Cada munição desta custa vinte centavos. Deixei um real de troco pra você.”

Carlos conseguiu entrar embaixo da cama. Agora pensava na mulher e nos gritos ouvido na sala. Não sabia se tinha sido sua mulher que tinha sido alvejada. Esperava que fosse a polícia matando o sequestrador. Seu coração batia tão forte que dava pra ser ouvido, como uma panela de pressão cozinhando feijão. Carlos fazia apneia em uma tentativa fracassada de esconder a respiração ofegante. A porta finalmente se abriu, mas não era o socorro que ele havia acabado de pedir em preces ao céus. A graça divina parecia ter sumido. Ia pagar com a vida. Estava colhendo o que plantou.

-venha cá, seu miserável. Não se esconda. Apanhei feito homem, sem chorar. Agora vim cobrar, dizia o passageiro.

Carlos, explosivo do jeito que era, ouvindo aquilo quis sair, mas parou quando lembrou do garrucho.

O passageiro aproximou à passos largos, olhou nos olhos amedrontados de Carlos, e não pode mais esperar. Pagou o real como prometido, em cinco munições de vinte centavos. O corpo perdendo a vida dava espasmos. A notícia espalhou por toda a cidade. Um dos jornais locais reproduziu uma matéria, dois anos depois do assassinato do motorista, da mulher que tinha superado a tragédia de ficar paraplégica e assumido um casamento com um dos tatuadores mais polêmicos da cidade. O passageiro foi absolvido pelo seu estado mental.

eraldo junior
Enviado por eraldo junior em 26/07/2017
Reeditado em 26/07/2017
Código do texto: T6065977
Classificação de conteúdo: seguro