VINGANÇA

Rogério vivia algo amargurado após o falecimento da sua esposa. Sentia remorsos pelo distanciamento que o trabalho implicara na sua vida familiar. Mesmo o filho, Diogo, apesar de não lhe faltarem bens materiais que o pai sempre providenciara, crescera sem o afeto do progenitor, pois trabalhara em África durante muitos anos e raramente vinha a casa.

Um dia em que colocava os papéis em ordem, remexendo na escrivaninha onde sua defunta esposa costumava escrever, achou no meio de correspondência antiga uma carta fechada, com o seu nome no endereço. Curioso reconheceu a letra dela e abriu-a com cuidado, pois parte da cola tinha ficado a prender duas folhas no interior. Leu-a várias vezes, incrédulo pelo conteúdo.

“ Querido esposo:

Durante todos estes anos de matrimónio lidei com o teu distanciamento e frieza afetiva. Sempre te fui útil, sempre te servi, mais na cozinha que na cama. Mãe melhor o Diogo não poderia ter pois à falta do teu amor, dediquei-me a ele de alma e coração.

O dinheiro não é tudo, sabes? E de ti nunca tive afetividade… Desconheces totalmente o coração de uma mulher, da TUA mulher…

Durante toda a minha vida fui um objeto, mais um na decoração do teu LAR…

Pois tenho a confessar-te o meu maior pecado: Pouco tempo após começares a trabalhar lá longe o Amândio, o teu querido amigo, aquele companheiro de farras e de futebol sempre que vinhas a casa, pois esse teu fiel camarada, às tantas, na tua ausência, começou a visitar-me com frequência, mostrando-se sempre muito solícito para comigo. Sempre respeitador, convenceu-me a dar pacatos passeios pelos jardins, a ir ao Zoo, a museus, enfim, aos poucos ficou íntimo.

Uma tarde de Julho em que me visitou, quente pois era verão, e que me encontrou saída do banho, apenas com um roupão vestido, sentou-se ao meu lado no sofá da sala e pegando-me nas mãos declarou-se apaixonado por mim.

Sempre te respeitei, acredita! Mas o dia estava tórrido e a situação levou a que a minha resistência baixasse até que ele concretizou os seus intentos e fez sexo comigo.

Depois dessa vez houve mais duas ou três ocasiões de sexo. Confesso que ele era um bom amante e embora de forma tão pouco ortodoxa, na altura satisfez a minha libido… Estivera muito tempo de “jejum”, entendes? Possivelmente não, mas também não interessa…

Quis o azar que eu ficasse grávida… É verdade, na Sua sapiência, Deus escreve direito por linhas tortas… Sempre consegui disfarçar a gravidez pois tu, quando vinhas até à metrópole, pouco me ligavas e nem deste pela situação… Estavas vários meses ausente e distraído como sempre, troquei-te as contas… Ironia do destino, né? Sempre te consideraste pai biológico dele e afinal é de outro…

Bem, na verdade tem poucas parecenças contigo, em feitio e feições é todo mãe, graças a Deus.

Ninguém sabe deste episódio, só o Amândio, que covarde como todos os homens, logo que soube da minha gravidez saiu de fininho, mudou-se para outra cidade, penso que para Leiria e nunca mais deu sinal…Tu próprio estranhaste mas o assunto morreu ali.

Isso não me afectou, foi apenas um acidente, nunca houve amor entre nós. Mesmo assim, apesar do teu comportamento, sempre contaste mais que ele, um conquistador barato e mesquinho…

Sei que ficarás revoltado com a situação mas tu foste o principal responsável. Só espero que me perdoes.

Quando leres esta carta, escrita há algum tempo e que só recentemente fechei e tornei acessível à tua leitura, pois sei que o cancro que me desgasta em cada dia é incurável e em breve me levará para outra dimensão, decerto ficarás a odiar-me.

Não interessa mais, sei que o meu rico filho nunca me esquecerá e um dia quando eu partir, me levará flores ao cemitério. Ele ama-me tal como eu sempre o amei, mais que tu e o resto da família. Há um cordão umbilical invisível, que nos liga e nunca romperá.

Espero que te portes finalmente como um homem e honres o teu nome, dedicando-te ao Diogo, que para todos os efeitos é teu filho. Ama-o, por favor. Quanto ao resto, esquece-me, se quiseres e puderes.

Amélia”

Rogério pousou as folhas e ficou a olhar para a janela… Tinha de pensar no assunto. Num primeiro impulso, pensou em desfazer-se de tudo o que dela poderia recordar. Depois, mais racionalmente, entendeu que isso seria uma afronta para o seu filho, que não tinha culpa de nada do que acontecera.

Iria respeitar o pedido dela. No fim de contas, a culpa até tinha sido dele.

Iria amá-lo, talvez de forma mais próxima. O Diogo era o seu filho, sempre se considerara o pai dele e assim continuaria. Além disso poderia contar sempre com a ajuda da cunhada, a Cláudia.

Rasgou a carta em muitos pedaços e desfez-se deles, indo colocar o saco do lixo no contentor da rua. Depois foi dar um passeio pedestre para espairecer…

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 28/09/2017
Reeditado em 30/09/2017
Código do texto: T6127105
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