A vida não é cinza

Hoje não foi a primeira vez que morri, mas um pouco diferente das outras, foi a última.

Os elogios, por mais criativos que fossem, nunca serviriam para algo além decorar o ego dos meus pais. Linda, inteligente, perfeita, flor da família eram ridiculamente impróprios para me descrever, até então. Não me preocupei em nascer, então não tenho direito de me preocupar em morrer, e foi com esse antigo ditado popular que a minha jornada começou.

Minha vida nunca foi difícil. Cresci à beira do paraíso, sempre flertando com anjos e demônios pelos corredores de apartamentos palacianos e banheiros limpíssimos de colégios. Chegou um momento em que tudo isso se transforma em um imenso furacão de tédio, trazendo o cinza para todos os possíveis cantos em que seu olho possa descansar. Eu não culpo o mundo, eu não me culpo e muito menos meus pais, a única culpada de tudo isso, é a vida.

A mulher de branco que determina quem sobe, quem fica e quem desce. Ela nunca me olhou nos olhos ou sequer me deu um tapa de bom dia, mas sempre esteve embaixo da minha janela durante as manhãs de domingo. Meus pais faziam de tudo para que ela passasse bem longe do nosso apartamento, por mais difícil que fosse, eles sempre queriam tomar conta de tudo, principalmente das cores.

Certo dia enquanto ia para o colégio, resolvi tornar um trabalho depois da aula em uma mentira e foi essa mentira que causou a minha primeira morte.

O motorista me deixou na porta do colégio, e como de costume, buzinou me certificando que já estava indo. Meu pai havia deixado muito claro que ele só deveria sair assim que eu entrasse no prédio, porém, isso já estava um pouco nebuloso na cabeça do homem.

Vi o carro vermelho dobrando a esquina e disse ao porteiro que precisava comprar um livro antes de entrar. Ele, sem a mínima vontade de escutar, balançou a cabeça em um áspero sim e continuou, mecanicamente, desejando bom dia a qualquer criatura que cruzasse sua frente. O rapaz não olhou, se quer notou que na direção que eu ia, não existia nenhuma livraria, havia apenas uma praça. Sentei no primeiro banco que encontrei, coloquei meus fones e admirei a tempestade que sorria para mim.

As pessoas começaram a vibrar lentamente no ritmo do novo mundo que se formava à minha frente. Enquanto a música aumentava, podia ver a mulher de branco vindo até mim, rindo, balançando seus longos dedos magros, trazendo mais cor e movimento a cada coisinha que deixava para trás.

— Eu sou a vida.

— Eu sei.

— Você não tem medo de mim?

— Não.

— Deveria.

Ela passou por mim, e pela primeira vez nesses 14 anos eu pude sentir o gosto da morte. Olhei para a minha mão que agora brincava entre o azul claro e o verde musgo, meus pés já não tinham suas formas naturais e alguns segundos depois, eu era uma sereia, e em outros uma ave ruiva.

As pessoas sorriam ao me olhar, vibrando de emoção enquanto eu me transformava, até ver aquela senhora e seu filho. Ela trazia a palavra Culpa tatuada em sua testa. Andava de um jeito engraçado, gesticulando e clamando para todos que estavam na parada de ônibus. Ela estendia a mão esquerda espalmada enquanto a outra servia de fortaleza para seu filho. Ela batalhava com cada pessoa ali, uma guerra pessoal e invisível; de um lado uma rajada negativa de desdenho popular e do outro o choro faminto do seu pequeno povo. Essa história, ela não iria contar.

Aos 14 anos, eu morri pela primeira vez ao ver a Culpa e seu filho.

Um longo ano se passou e o véu do mundo se cobriu de cinza novamente. Meus pais nunca descobriram sobre o dia que faltei aula, nunca iriam descobrir, e se caso o fizessem, colocariam a culpa no motorista, que já havia sido demitido, ou na diretora do colégio. Os mesmos amigos, mesmos professores, mesmos demônios e mesmos impostores. Mais uma vez eu senti a vida me enchendo lentamente, porém, agora, já havia sentido o gosto alcoólico da morte o suficiente para me fazer tomar outra dose. Eu enchi o cálice.

O porteiro não acreditou, mas engoliu a desculpa do caderno esquecido em casa. A praça havia dado espaço a um shopping, e de todos os locais que visitava toda maldita semana, aquele era o último que pretendia pisar. Caminhei por uma rua que nunca precisei aprender o nome, até chegar num bequinho inexistente com várias casas sonolentas. Coloquei meu fone e sorri quando as coisas começaram se movimentar de novo.

As casas estavam namorando entre tons de rosa e amarelo, porém a última - de número 23 - continuava cinza. Caminhei até ela e notei que em sua frente havia um banco de pedra marrom, e foi lá, que passei o resto daquela manhã.

— Você já vai? — Perguntou Vida.

— Preciso ir, logo vão me buscar.

— O homem vai lhe levar para o mundo cinza novamente.

— Eu sei. — Respondi insatisfeita — Mas o que posso fazer?

A mulher de branco apontou três dedos para dentro da casa, onde da sala podia se ver uma criança rindo e brincando com um pedaço de corda pendurada no teto. Ele era tão colorido que ainda não existem cores que tentem descrever o que vi rosto daquele menino.

— Ele pode tornar seu mundo colorido.

— Meus pais não iriam gostar disso.

— Eles precisam gostar. — Sorriu Vida. — O fato das cores não serem lembradas por eles, não as tornam perigosas.

— Eu estou com medo.

— Eu sei.

A Vida me tomou pela mão. Conduziu meu corpo, que agora parecia flutuar, até o garotinho que dançou e gritou de euforia ao me ver. Apresentou o menino que se chamava Coragem. O abraço dele foi tão apertado que em apenas um estalo meu mundo se encheu de cor novamente. Para sempre.

Fabio Darren
Enviado por Fabio Darren em 11/10/2017
Código do texto: T6139509
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