Roubaram a minha infância

O dia das crianças tem tudo a ver comigo. Alegria, diversão, brinquedos, doces e muitas cores. Esperei ansiosa a chegada deste dia para ir até uma pequena praça que fica perto da minha casa. Mal podia esperar para me jogar na piscina de bolinhas, ir no pula-pula, no escorregador, na cama elástica e comer muito algodão doce. Não é Mc Donald’s, mas amo muito tudo isso. Todos os anos essa praça se transforma num mundo encantado para todas as crianças do meu bairro. A responsável por toda essa magia é uma senhora que após ter alcançada uma graça concedida por Nossa Senhora Aparecida quando pequena, prometeu tornar esse dia em um dia inesquecível na vida de qualquer pirralho. Acordei animadérrimasíssima e mais rápida que sorvete derretido neste calor fui para lá. No caminho notei algo estranho. Não vi nenhuma criança na rua. Só me deparei com adultos que apresentavam um comportamento estranho. Ninguém se falava, ninguém se olhava, ninguém se abraçava. Andavam sem rumos e com os olhos fixos na tela do celular. Estavam hipnotizados e robotizados. A minha tristeza foi maior quando cheguei na praça e a encontrei vazia. Ela estava colorida como sempre. Cheia de bandeirolas, brinquedos infláveis, bexigas coloridas. O cheiro do algodão doce, do cachorro quente e da pipoca exalavam no ar. Só não havia as tradicionais músicas, tudo era silêncio. De repente não mais que de repente, o silêncio foi interrompido por soluços. Alguém chorava e o choro vinha detrás de um dos tobogãs. Dona Aparecida estava em prantos. Quis saber o motivo das lágrimas que escorriam feito cachoeira de seus olhos e ela então suspirando me respondeu:

- As crianças não vieram, Beth! Todas desapareceram. Isso nunca aconteceu. Não posso deixar de cumprir com a minha promessa. Sem elas tudo será em vão.

- Não fique triste! Eu estou aqui, vamos pensar numa forma de salvar o dia das crianças.

De fato, todas as crianças, não só da pacata Cidade da Perseguida, mas do mundo todo, já não mais existiam. Peguei um saquinho de doces e fui até a piscina de bolinhas. Antes de entrar, peguei o meu celular para pesquisar sobre esse estranho mistério. Nem cheguei a ligar, pois eu deixei o aparelho cair dentro da piscina depois de levar um tremendo susto. Os doces que estavam dentro do saquinho começaram a se mexer e a falar ao mesmo tempo.

- É ela, é ela, só pode ser ela, rápido precisamos partir. Pulem, pulem.

Os docinhos azuis, rosas, laranjas, verdes e vermelhos pularam e se misturaram com as bolinhas coloridas da piscina. Muito curiosa, mergulhei atrás deles. Mergulhei bem fundo. As bolinhas que enchiam o espaço ficaram enormes e aí percebi que eu estava encolhendo. Fiquei muito pequena e o fundo da piscina começou a brilhar. Quando caí lá embaixo, o chão acendeu por completo. Projetava imagens gigantescas. Foi então que percebi que não era o fundo da piscina e sim a tela do meu celular. Eu havia encolhido tanto que fiquei menor que um dos seus aplicativos. Os doces que agora estavam do meu tamanho, me cercaram como um pelotão de soldados. Disseram todos:

- É chegada a hora. Não podemos perder tempo.

Três pirulitos azuis se juntaram e houve uma grande explosão. Desmaiei e quando acordei dei de cara com uma menininha loirinha usando duas trancinhas com um lacinho vermelho na cabeça e de vestidinho rosa. Ao lado dela um senhor ruivo, de bigode e cavanhaque, com uma mini cartola vermelha na cabeça, usava um monóculo no olho direito, fraque vermelho e uma calça azul. Sorrindo ele me disse:

- Bem-vinda no País do Celular, Beth! Você está agora no delicioso mundo do Candy Crush Saga! Eu sou o Mr. Toffee e esta é a Tiffy. Vejo que você não nos visita a bastante tempo.

- Parei de jogar, nunca consigo passar da fase 294! Mas eu quero saber porque me trouxeram para cá.

- Calma, Beth, Calma. É que ouvimos você falar para a dona Aparecida que iria salvar o dia das crianças. Também ficamos com pena da bondosa senhora e resolvemos dar uma pausa no jogo para te ajudar.

- Sério Tiffy? E como podem me ajudar? Sabem o que aconteceu? Onde foram parar todas as crianças?

- Nós não sabemos, mas conhecemos alguém que sabe. – Respondeu a graciosa Tiffy.

- Você deve procurar o senhor Google. Ele tem todas as respostas do mundo. É um grande sábio. – Completou o Mr. Toffee.

- E onde eu o encontro?

- Vá até o mundo do Chrome. Lá você encontrará o senhor Google. Ele é fã do Chapeleiro Maluco. Toda tarde ele toma chá com seus amigos Facebook e Youtube.

- E qual caminho devo seguir para chegar até o mundo do Chrome?

- Aqui no país do celular, você não precisa andar. Basta pedir para a Siri que ela vai te trazer.

Mr. Toffe e Tiffy desapareceram quando eu solicitei para a Siri me levar para o mundo do Chrome. Ela gentilmente me atendeu. Era um mundo colorido. Havia uma mesa bem grande no meio de um jardim florido. O senhor Google conversava animadamente com o Facebook e o Youtube.

- No que você está pensando, amigo Face?

- Não vale, amigo Google. Essa pergunta sou eu que faço.

Os três caíram na risada e o Youtube notou a minha presença.

- Amigos, parece que temos visita.

- E aí Beth DBG? Sente-se. Aceita uma xícara de chá?

Caramba! Google é foda mesmo. Já sabia quem eu era.

- E então? Em que posso te ajudar?

- Quero saber sobre o desaparecimento de todas as crianças. O senhor sabe o que aconteceu?

- Claro que sei. Isso é obra da Rainha. Ela faz todo mundo perder a cabeça. Ela mantém todas as crianças aprisionadas no encanto dela. Rouba-lhes o seu tempo e quando elas crescem se tornam adultos depressivos, obesos, individualistas e por aí vai.

- Mas que Rainha é essa?

- A Rainha Wi-Fi. Ela tem seu lado bom, mas as pessoas perderam o limite e não são capazes de utilizar o bem que ela pode trazer. De tanto usá-la de maus modos, acabou se tornando uma vilã. E agora ela sequestrou a infância de todas as crianças.

- E como posso enfrentá-la.

- Você deve encontrá-la e convence-la a mudar de senha.

- E qual seria a nova senha?

- “Não posso dar. Vá brincar”. Essa será a nova senha da Rainha Wi-Fi. Mas cuidado para não ser capturada pelos seus guardas, os Aplicativos. Eles são poderosos e manipuladores.

Me despedi dos meus três amigos, convoquei a minha amiga Siri novamente e num piscar de olhos estava no mundo da Rainha Wi-fi. Ela ficou uma fera quando propus mudar a senha. Só ouvi seus gritos:

- Que ousadia! Que petulância! Guardas, peguem essa fedelha!

O palácio da rainha foi invadido por um batalhão de Aplicativos que vieram me prender. Saí correndo e eles me seguiram. Escondia aqui e escondia ali. De repente ouvi um barulho enorme de gritos de criança se divertindo. Brincando de pega-pega, amarelinha e pique-esconde. Fui despertada com a voz suave de dona Aparecida que me dizia:

- Querida. Saia desse celular. Vá brincar com as outras crianças lá na praça. Está um dia lindo de sol. Aproveita o dia das crianças.

- Dona Aparecida, qual é a senha do Wi-Fi?

- Não posso dar. Vá brincar.