A janela

Prendi seu sorriso na gaiola

e ele se pôs a cantar!

Anatole Ramos

Era para ser uma manhã de domingo como outra qualquer. As crianças brincando o tempo inteiro, as famílias indo à missa, o comércio fechado, os homens descansando e as mulheres –para não variar mesmo – trabalhando. Ia tudo normalmente bem no domingo da família Machado, até que o Pedro, filho do meio – considerado não inteligente por uns, preguiçoso por outros, mas no fundo um bom garoto – num dos poucos dias que tem permissão para jogar pelada se envolve numa furada.

Na verdade ele não estava brincando. Enquanto o Fernando marcava o Márcio – irmão de Pedrinho – que sempre driblava o Carlos e o Manoel e partia para o gol, Pedrinho ficava na posição de gandula, que por sinal não era aquela que ele queria, mas se divertia ao correr atrás da bola e brincava discretamente com ela antes de devolvê-la ao jogo. É engraçado como as crianças conseguem, graciosamente, se ajustar ao mundo e buscar a felicidade e a alegria mesmo com as adversidades que ele oferece.

Aconteceu que perto das dez horas, o Márcio estava do outro lado do campo improvisado na rua, e queria se mostrar para a Gabi que passava pela calçada. O Márcio prendeu a bola com o pé, chamou a atenção de Gabi e chutou o brinquedo em direção aos tijolos que serviam de traves com toda a força que pôde. Tanta força que a bola fez uma parábola enorme e acertou em cheio a janela do escritório do Cel. Azevedo, vizinho de muro de Pedrinho e Márcio.

Os garotos ficaram perplexos e a Gabi sorriu, abanou a cabeça e saiu. Pedrinho olhava para a janela quando seu querido irmãozinho ordenou-lhe que fosse à casa do coronel buscar a bola. Ele tentou negar, mas os outros reforçaram a idéia e lá foi o nosso herói buscar o precioso objeto.

Chegando no portão, Pedrinho, com suas mãos trêmulas, bateu indeciso na altiva muralha metálica que se abriu de supetão. Do outro lado eis que era o próprio coronel fardado, com a bola numa mão, um revólver na outra e um semblante de pouca amizade. Com sua voz austera, o militar perguntou em tom afirmativo se fora ele o autor do crime. Nisto Pedrinho pálido já não tremia somente as mãos e olhava com os olhos esbugalhados hora a bola, hora a arma e de vez em quando a cara monstruosa do militar. Como o menino não conseguia falar uma palavra sequer, o coronel deu o veredicto. Guardou o revólver na bainha e com a mesma mão apertou a orelha do pobre, indo bater na casa de sua mãe.

Como um criminoso pego em flagrante, fora conduzido à força pelo oficial acompanhado por uma leva de curiosos. Todos queriam saber qual seria o destino daquela situação. Alguns falaram que Pedrinho deveria consertar a janela, outros que apenas levaria uma surra e ainda outros mais sádicos diziam até em morte. E o bairro todo foi assistir ao espetáculo. Alguns com direito a camarote nas árvores e parece que saiu até bolão de apostas.

Quando Dona Mara atendeu a porta o silêncio foi total – todos queriam ouvir os detalhes – O Cel. Azevedo foi incisivo. Disse: “Este bandido destruiu minha janela e exijo providências”. A mãe olhou com rancor para o réu e sentenciou: “Você realmente não serve para nada, não é?”. Quando o garoto abaixou a cabeça com os olhos ainda mais cheios d’água a Dona Mara finalizou: “Você foi o pior castigo que Deus me deu!” e neste instante a voz de cada indivíduo presente se misturou numa tácita melodia de desprezo.

Pedrinho se desligou do momento presente e nem o dom infantil de ignorar o destempero dos adultos estava ao seu lado. Sua vida começou a passar em sua mente como num filme. Lembrou-se de cada momento em que seus pais rejeitaram seus carinhos; cada desejo insatisfeito; cada apelido que ganhava na escola; das partidas de pelada em que ele queria ser atacante, mas tinha que ser gandula; de seu irmão tratando-o como servo, inferior. Foi ligando fatos, revivendo memórias num doloroso sentimento de ser, sentir e querer. Tinha se dedicado por toda sua vida aos outros, sempre os outros. E ele ficando para segundo plano. Viveu dez anos em mentiras e fantasias. Já não dava mais para suportar o ostracismo a que fora sujeito. Sentia-se o pior dos humanos. Havia sido usado como objeto descartável, um papel higiênico abandonado num armário. Tão útil quando se precisa, mas tão asqueroso após o uso. Assim seu pensamento era um verdugo insimulando sua existência insólita e insociável. Acompanhando cada fato as dúvidas o perseguiam: “Por que eu?” “Por que eu tinha que nascer?” “Por que um casal gera uma criança para sujeitá-la assim?” E com as dúvidas ele fora se identificando com Jó e, como ele, já amaldiçoara seu natal e sua existência pelas desventuras sofridas pela vaidade alheia.

Ainda lançavam-lhe insultos e tapas. Mas ele nem notava. Estava mergulhado num mar negro de lembranças. De súbito, Pedrinho saiu correndo às cegas. Os que perceberam acompanharam com os olhos cada movimento. Em zigue-zague perdido numa coreografia disforme, mas linda, em que ele passava as mãos desgovernadas nos cabelos, corria, buscava algo no horizonte perdido, e corria, e voltava, e chorava magnificamente tudo ao mesmo tempo sob os olhares curiosos da platéia. Num segundo, somente o som dos pneus cortavam o silêncio. E as retinas registravam o trágico espetáculo, o último movimento coreográfico. “E flutuou no ar como se fosse um pássaro. E se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”

Passa o tempo e os pais de Pedrinho comentam com remorso o destino do filho. Lembram-se do quanto ele foi bom. De sua educação e disposição para ajudar. Dos três foi o mais aplicado e mais responsável. Era realmente um filho exemplar. Pena que partiu tão cedo! Tantas coisas a conquistar!

Paulo Marques
Enviado por Paulo Marques em 23/08/2007
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