ela que era dele e ele que não era meu

Colocava força nos pedais para que as rodas da bicicleta me erguessem daquilo que parecia uma montanha nascida bem em meio à rua; no entanto não me obedeciam, iam a favor do vento que se quebrava contra mim e a favor de meus cabelos, que voavam para trás de forma trágica e afobada. E sua pressão era tanta que já havia desensacado a blusa da minha saia e soerguido todo o pó acumulado nas calçadas para os meus olhos. O vento impermeabilizara a minha pele quando arfante cheguei ao topo do morro, onde o suor não me chegava, e morta de cansaço vi, como um clarão, o que era a coisa última da rua Guajajaras, fenecendo em árvores com copas de verde brusco, que tremelicavam de forma violenta pelo vento, e casas de diferentes classes e cores e estilos enforcadas umas nas outras, cujas portas e janelas eram desesperadamente fechadas. Relâmpagos não se viam, talvez porque o sol os ofuscava de algum lugar por debaixo das grossas nuvens cinzas que remendavam os céus. Um arco-íris se desvencilhava irônico no degrade que juntava a rua com as nuvens; lá estava ele, mas as ruas estavam secas como as folhas que se propagavam pela correnteza, o temporal ainda não chegara e ele já se erguia como se o pior já tivesse ido embora. Naquela profusão de ventos a esposa de H. abriu a porta quase como numa luta, e ao ter na sua frente eu e em minha frente ela, reconheci, como uma reconhece um filho ao tê-lo pela primeira vez nos braços, que aquela miudeza involucra em sua penumbra de fumaça abrasada era a coisa mais repugnante que eu conhecera. Meu reconhecimento se estendeu para além do educado, ela esforçando-se para manter a porta aberta enquanto o vento lhe castigava e eu a olhando prolongadamente — quanto mais fincava meus olhos nela mais minhas vistas tinham repulsa, contorcendo-se em irritação e descrença, pois ao vê-la sugar e ser sugada pela sua natureza ressequida de tão queimada era como se toda a beleza do mundo tivesse sido acuada e aniquilada, não havendo mais resto algum para cura-las da visão do dejeto que rememorava em cada côncavo seu os mais fastidiosos séculos. Um vício, já não podia soltar meu olhar de sua decadência, tampouco renegar o prazer e indigestão que era reencontrar nela as coisas cujas quais um dia eu e tantos outros povos repudiamos com veemência. No entanto eu precisava colocar-me para dentro e dar as costas àquela nauseante mulher, pois ela já me ordenava feio com o olhar lívido.

Ela me incomodava, ela e o seu silêncio, ela e o seu jeito pouco afável de ter H. ali sempre por perto para dividir a vida. Queria descobri-la; queria induzi-lo a contar sobre aquela mulher que cosia, remendava e fumava. E a boca dela teria gosto de cigarro, e suas roupas de fumaça, elas que recobriam sua pele, que a abrasavam junto, ela era toda feita de cigarro; ele dividia o leito com o miasma dela, que ingurgitava nos lençóis, escapava pelas beiradas, transcorria pelo chão — e nos lençóis ele se envolvia, nas beiradas ele se sentava, no chão ele pisava. Enlameava-se nessa transpiração repugnante que era só dela, e ele amava ser o pedaço onde os pedaços dela respingavam? Queria que ele me dissesse, que, repugnado, confessasse que a detestava, que não a abraçava pois sua pele era fumaça, que não a beijava pois um passeio por sua boca era como tragar a dois maços. Que ele repudiasse seus odores, quisesse destruí-la esmagada com o mesmo prazer com que ela punha o cigarro no chão para pisoteá-lo de forma lenta; sua luz cessava no som de um raspar que fazia subir uma fumaça que logo se recolhia à morte no assoalho. E a mulher, a mulher cujos ossos eram tabaco e as veias bitucas, a mulher que acabara de matar a um cigarro, propunha-se no mesmo instante a dar luz a outro, uma perna por sobre a outra, a fumaça num alude pelos buracos da narina. Observava-a com horror, vê-la em sua textura cinza e vestido plissado de cor creme daria cólera a mais otimista das pessoas; ela era degradante, ela degradava.

A chuva tremeluzia as telhas da casa, os móveis estavam recobertos por uma penumbra cinza, a voz no rádio saia abafada como o próprio ar. Pela cozinha ela entrara, subira o botão do interruptor com uma exclamação de “Aqui está escuro! Como conseguem estudar no escuro?” e fora para a bancada passar café; ofereceu-nos, nunca nos oferecia, recusei-a num súbito enjoo de imaginar aqueles fios de sua cabeça besuntados de sebo decaindo-se para dentro da cafeteira italiana na qual debruçava sua atenção; não fosse os fios ou fossem eles limpos, sua oferta saíra na voz de esguicho, para fora e nunca para dentro, e o cuspe já se apossara do interior do filtro por onde o café agora era coado, o preto brilhante afogando-se nas partículas moleculares das células vindas do interior daquela mulher, num casamento asqueroso; H. aceitou ao café, colocou-o para descansar por cima da toalha de mesa, ensinava-me algo, eu disse “eu adoraria”, mas para o que eu havia respondido que adoraria? Desesperei-me, eu adoraria, falei, eu tinha dito àquilo de forma espasmódica e nenhuma parte daquela casa, por mais que eu olhasse e reolhasse, parecia ter armazenado o que eu adoraria. H. sorvia ao café, seus vincos eram agora inundados como barragens rompidas inundavam vales; o líquido ensebado batia contra suas paredes do estômago e a corrosão interna o tragava como ela fazia com o tabaco. Consumia-a e na minha frente eu tinha uma xícara repousa num pires; o vidro pronto a se partir tamanha força colocava para desencostar-se do café preto com gosto daquela mulher — eis o que eu adoraria. Era minha vez de consumi-la, eu a tinha aceitado, e como numa sentença eu a engoli como água, em dois goles onde minha garganta se expandiu ao máximo para recebe-la em seu horror. Meus lábios outrora insípidos e róseos agora tinha gosto e cor de azinhavre, cobriam e apoderavam-se de minhas dobras labiais como resto de batom seco; meu dedo as raspavam e como farelos caiam para se espalhar no infinito do ar, aqueles fiapos que eu desprendia de mim não passavam de nesgas da pele dela — onde por ao menos durante uma noite ele tinha a acarinhando como fumaça, a beijado com seu gosto de tabaco, a ensopado com sua saliva na poluição que era o hálito dela, a apalpado, a alisado — e gostado —, em vaivéns que percorriam de seus seios ainda em pé até sua anca. Quis golfar-me para fora de mim.