A SOLIDÃO DOS CEGOS

Estou na cama e já percebi que não vou conseguir dormir. Estou zonza por conta da bebida e meus pensamentos perdidos em tudo o que ouvi de Rose e também de Gregório nesse maldito jantar.

Não estou chateada com ela, não há motivos; na verdade nem sei se a minha frustração (essa é a melhor palavra) é com meu marido ou comigo mesma. Se é verdade essa história do vídeo porque ele não me mostrou? Acredito que temos intimidade para isso, afinal sou esposa dele. Graças a Deus ele está no banho. Não conseguiria pensar com ele do meu lado e hoje certamente ele vai me procurar e vou ter que entrar no clima de mulher sensual, embora eu esteja morta de cansada por ter passado a tarde e o começo da noite preparando o jantar para os nossos convidados.

A revelação de Rose foi no intervalo do jantar. Sai da mesa em direção a cozinha e ela a pretexto de me ajudar com a louça e a trazer a sobremesa veio atrás enquanto nossos maridos permaneceram conversando na sala. Ela já levemente alcoolizada começou o confessionário:

_ Lígia o jantar estava ótimo como sempre, mas não vejo a hora de chegar em casa. Essa noite promete - deu uma gargalhada e continuou: _Sandoval quer repetir a noite ma-ra-vi-lho-sa que tivemos ontem. Eu devia agradecer ao seu marido de joelhos.

_Meu marido? - perguntei sem entender.

_É. Aquele vídeo pornô que ele postou no celular do Sandoval. Você não viu? Nossa! Tentei fazer os movimentos daquela loirinha, mas a menina deve ser contorcionista de circo. Você viu o que ela faz com as pernas? Meu Deus!

Eu sorri fingindo saber de qual vídeo minha amiga falava. Não tinha visto nada, mas não ia admitir pra Rose que minha vida sexual com Gregório se resumia a uma “automação biológica funcional”, ou seja, sexo apenas pra cumprir um protocolo matrimonial e não uma busca conjunta de prazer.

Além de inveja, não vou negar, o que me incomodou foi saber através de uma amiga que o meu marido consumia esse tipo de conteúdo. Desde quando Gregório assistia vídeos porno? Lembro-me perfeitamente que nas vezes que propuz assistirmos ele foi categórico dizendo que não curtia, pois esses vídeos objetificam o papel da mulher e que essas meninas deviam ser filhas de alguém, etc.

Eu achava os comentários retrógrados, mas todo esse discurso pró feminista era típico dele. Greg é um eterno defensor das causas minoritárias. Um sociólogo até na hora do sexo. Um homem com estatísticas e argumentos coerentes pronto pra dar a palavra final sobre qualquer assunto polêmico do qual parecia ser sempre um especialista. Eu admirava a inteligência dele, razão pela qual me apaixonei, mas confesso que na cama preferia ter mais um homem em vez de um pensador filosófico. Admito que nossas transas não tem qualquer ousadia. Será que todo esse discurso era hipocrisia e no íntimo ele gostava desses pornos, mas preferia vê-los sem mim?

Era estranho que Greg tivesse postado para o amigo o tal vídeo. Não parece ser coisa dele. Talvez tivesse apenas recebido e repassado o video por uma mera camaradagem entre homens. Não é o que dizem? Que eles são leais entre si. E se assim foi, quem teria passado inicialmente para ele? Não consigo conceber a idéia de meu esposo pesquisando sacanagem na Internet.

Quando eu e Rose voltamos à sala trazendo uma mousse de maracujá foi surpresa ver meu esposo numa quase discussão com o amigo por conta de uma opinião divergente sobre a contratação de um zagueiro como reforço de um time para o campeonato estadual. Parei por um momento e me perguntei mentalmente “Cadê o meu marido?”, afinal até onde sei Greg nunca foi entendido de futebol e nem pra time algum ele torce. Como que de repente ele sabia a escalação completa do time e a relação de clubes nos quais o zagueiro passou? Teria se informado na internet para ter o que conversar diante de inoportuno silêncio? Absurdo! Isso não fazia o tipo dele, no entanto falava com tanta convicção que me pareceu que ele fingia para mim ser outra pessoa ou talvez os anos de nosso casamento fizeram com que eu já não enxergasse o meu marido ou suas possíveis mudanças ficando elas enevoadas pela rotina.

Mudanças… O quanto éramos os mesmos desde o começo da nossa relação? Depois de 10 anos acho que nem me reconheço mais. Conforme conselhos maternos a mulher deve ser submissa e aprender a ceder em favor da harmonia do lar que uma mulher virtuosa deve priorizar acima de interesses próprios. Isso era um exemplo de minha mãe, baseado em preceitos religiosos e que com os anos eu seguia sem perceber, embora não tivesse fé como a dela.

Eu já não pintava minhas telas, pois Gregório não gostava do cheiro de tinta; não tinha um cachorro porque Gregório não gostava de animais e dizia ser alérgico...

Greg possivelmente não tinha se anulado tanto quanto eu pra preservar nossa união ou seriam esses interesses por pornografia e futebol legítimos e ele fingia não gostar? Podia ser só efeito da bebida. E por falar nisso, que raios deu nele pra beber cerveja no jantar em vez de vinho, já tão familiar ao nosso paladar? Nem me lembro se algum dia vi meu marido chegar em casa com um fardo de cerveja debaixo do braço. Se alguém me perguntasse eu diria que ele não gosta de cerveja, fato esse também desmentido nesse fatídico jantar.

Se deixei de enxergar meu marido certamente também ele deixou de me ver. Já não pergunta mais sobre os livros que leio, os filmes que assisto ou minhas impressões gerais sobre qualquer assunto do noticiário. Temos atualmente conversas sobre trabalho, filho e dinheiro e não sobre sonhos, projetos, presente e futuro.

Dizia o filósofo Goethe que um homem quando ama uma mulher conversa muito com ela e sobre ela e quando deixa de ama-la conversa com ela sobre ele. Será que Greg não me ama mais? Teria a paixão se convertido em amizade em vez de amor? Não sei dizer. Nesse momento, enquanto ouço o barulho do chuveiro no cômodo ao lado percebo que nunca me senti tão só e um pensamento me apavora: Somos apenas dois cegos seguindo lado a lado por medo da solidão?

Virei - me pro lado, ajeitei os travesseiros e fiquei à espera de meu marido. Não iria confrontá- lo. Se o fizesse meu controverso marido diria que estou louca pela TPM sem perceber que isso também é uma violência doméstica, a mesma contra a qual ele discursa com seus argumentos.

Sei disso porque eu o conheço ou ao menos estou familiarizada com a versão que ele mesmo me apresentou. O que somos além das aparencias? Já nem sei dizer. Preciso tentar dormir... (FIM)