Selvagem urbano

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos...

...O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

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Eram seis horas da manhã quando ele chegou no aterro. Movia-se em passos lentos e descompassados que com dificuldade levava um corpo franzino e maltratado pela desnutrição e violência sofridas nas ruas. Em seu semblante observava-se facilmente a dor e o sofrimento acumulados pelos dias, meses e anos solitários vividos no submundo das ruas. Sempre fora solitário. Não se lembra direito quando deixara o leito familiar – caso o tenha tido – ou o nome daqueles que o abandonaram. Apenas carregava em sua memória as imagens de agressão e violência que sofrera tantas vezes em épocas pretéritas. Apenas a lembrança de uma mulher correndo pelos montes do aterro deixando-o para trás sozinho e desamparado.

Desde este dia já esquecido no tempo, aquela criatura tem o mesmo destino: O Aterro Municipal. Onde se mistura aos demais rejeitos da Sociedade. Tornara uma única massa junto a entulhos, lixo orgânico, poluição e segredos escondidos em sacos lacrados.

E ali vasculhou o monte jogado por um caminhão como um soldado perdido na guerra vasculha o mato pela sobrevivência. Rasgou sacos com papel higiênico e absorventes, cortou-se em cacos de vidro, encontrou cascas de frutas em putrefação e o mal cheiro nem o incomodava. Até que encontrou um pão bolorento e molhado de chorume. O banquete estava armado. Sem observar as condições daquilo, devorou sua refeição derradeira como os bandidos do corredor da morte. Num único movimento ingeriu tudo quase sem mastigar – com os parcos dentes que lhe restaram – engoliu o pão bolorento com um triunfo de gozo noturno. Enfim, adormeceu e foi percebido pela nossa sociedade.

Vai para o jornal ser manchete num pequeno texto ao fundo das denúncias de corrupção: “Homem é encontrado morto em aterro”.

Paulo Marques
Enviado por Paulo Marques em 24/08/2007
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