Enquanto você morria

Descobre que as pessoas mais importantes na sua vida

são tiradas de você muito depressa

(por isso, devemos sempre dizer

palavras doces às pessoas que amamos).

William Shakespeare

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Após muitos anos sem ver seu filho único, um grande empresário sente em seu íntimo um ardor ferido da paternidade. A solidão o assola já em longa data. Desde que se enviuvou nunca mais pôde ver seus doces netos que tanto gosta de apreciar. Procura em suas agendas, solicita à secretária e finalmente encontra os sete dígitos de seu rebento, anotados há muito, antes ainda da Anatel padronizar em oito. Ainda contempla os velhos rabiscos das páginas amareladas de uma agenda comercial surrada pelo tempo. Uma tímida gota escorre por um semblante austero. Bruscamente esfrega a face a fim de eliminar a intrusa. Mas o peito continua apertado e um simples gesto de mão não o pode apagar.

De longe vê uma imagem refletida na janela. Vê ali um velho de terno preto meio surrado, quase careca e cuja pele sofre com a ação da gravidade. Vê um semblante cansado, com enormes olheiras. Sente-se derrotado por um inimigo que ele não pode ver.

Olha para o aparelho sobre a mesa. Vê ainda o medo evidente em seu olhar refletido no velho telefone negro. Olha à sua volta e percebe que tudo é negro. Suspira e pega o monofone, disca vacilante cada número anotado e ouve de olhos fechados o primeiro toque. Também o segundo, o terceiro e o quarto. Resolve desistir quando ouve uma voz masculina.

“Alô!”

“Alô! ... Felipe? Você não acha que deveria visitar seu pai de vez em quando?”

“O quê? Você me liga depois de cinco anos e já vai brigando comigo? Não! Eu não acho que deveria te visitar não! Por todos estes anos eu fui órfão de pai. Quando participei de campeonatos você foi ao menos assistir? Não! E na escola? Alguma vez você foi lá me defender de algum garoto ou ao menos falar com minhas professoras? Não! Alguma vez que fiquei doente você ficou do meu lado ou ao menos foi verificar se ainda estava vivo? Não! Alguma vez me levou para passear ou brincou comigo? Não! Já me abraçou, disse que me amava, passou a mão em meu cabelo ou deu um sorriso? Não! E agora, depois de mais de trinta anos, vem cobrar de mim? Quando precisei de você eu era ignorado! Agora eu tenho uma esposa maravilhosa que ME AMA! Duas preciosidades de criança que ME AMAM! Amigos companheiros que estão sempre do meu lado. Agora eu não preciso mais de você!”

O homem abaixou a cabeça e aquele vazio no peito fora tomado por uma intensa dor de rejeição e remorso. Com os olhos cheios d’água ele respirou profundamente e retrucou:

“Não! Toda a minha vida foi dedicada a você! Foi eu quem patrocinei todos os seus campeonatos. E as escolas? Para você as melhores! E me certifiquei sempre para garantir que você tivesse os melhores profissionais ao seu dispor. Você dificilmente adoecia porque tinha uma alimentação saudável e equilibrada. Mas quando acontecia tinha uma equipe multidisciplinar conceituada lhe tratando e prevenindo...”

“Bla – bla – bla! Grande coisa! Não fez mais que sua obrigação!”

“Sim, eu sei. Mas eu dei a você tudo o que podia. Muitos pais não fazem nem isto por seus filhos.”

“É, mas trocaria tudo por um pai companheiro, amigo e carinhoso. Isto eu não tive.”

“Filho! Como te falei. Tudo o que eu podia fazer por você eu fiz. Trabalhei Sol-a-Sol para ter dinheiro suficiente para que tenha uma vida boa. Fiz uma casa espaçosa para que você tenha o melhor conforto que eu mesmo não tive. Carros, empresas e tudo o que eu tenho lhe ofereci! E você vem me pedir logo o que eu não tenho?

Felipe pára. Os olhos começam a inchar e já com a voz meio trêmula pergunta.

“Então é isto? Você não tem amor por mim?”

“Não! Não é isto meu filho! Eu te amo muito! Gosto e sempre gostei e admirei você! O maior orgulho na minha vida é ser seu pai. Por isto me consumi ao máximo para lhe dar tudo que lhe falei. Agora carinho, afeto e palavras doces... Isto eu nunca tive! Bem que eu queria poder te abraçar, beijar, ser seu amigo. Poder ensiná-lo aquilo que sei, apoiá-lo nos momentos difíceis. Mas como? Eu não sei fazer isto! Nunca tive ninguém para me ensinar a abraçar ou beijar alguém. Ninguém nunca me disse palavras doces. Pelo contrário! Vivi todos os anos de minha vida com cordas no pescoço. Aprendi apenas a cobrar e a produzir resultados. Sinto-me um fracasso enquanto homem. Mas eu sou isto que você vê! Não sei agir de outra forma. Lamento muito não ser o pai que você quer e merece. Também sofro muito com isto. Ao contrário de você eu não tenho mais esposa, não tenho amigos e meu único filho me odeia. Também trocaria tudo para recomeçar de novo. Mas como? Não dá para voltar no tempo nem apagar o que já passou. Estou só e frustrado. Lamento ter sido assim. Desculpe-me! Acho que não devia ter ligado! Desculpa!”

Neste momento nem um nem outro consegue conter as tão persistentes lágrimas. Tão distantes se sentiam que mal percebiam que estavam intimamente unidos pela mesma dor no espiral da história. Agora é o filho que sente todos os juízos que fizera do pai. Um filme passa pela mente de ambos e o passado os tortura em cada quadro. Um instante de silêncio tornou-se um eterno martírio onde cada flech de memória era um sofrer sob um carrasco invisível, impalpável, porém, implacável.

“Não pai! Por favor, não desligue! Esperei muitos anos por este telefonema, talvez minha vida inteira para poder ouvi-lo e ser ouvido. Eu que peço desculpas. Sei que também fui muito injusto com o senhor. Conheço bem sua história. Estou louco para vê-lo, levar seus netos e formar-mos juntos uma família. Cerzida, mas uma família! Se eu não pude ensina-lo a amar, meus filhos o farão. E tenho certeza que será um bom discípulo!”

“Sim filho! Infelizmente não posso apagar minhas marcas no tempo. Mas a partir deste ponto lhe garanto que estarei mudando meus conceitos e atitudes. Oportunidades você já me deu várias! Eu que não as aproveitei. Mas espero que ainda tenhamos tempo para aproveitar-mos a vida juntos.”

“Sempre há possibilidade de mudança pai. Eu também tenho muito orgulho de ser teu filho! Neste final de semana podemos fazer-lhe uma visita?”

“Claro! Estarei esperando de braços e coração abertos. Prontos para o recomeço!”

“Então tá! Obrigado por ter ligado! Um abraço!”

“Obrigado a você filho! Mande um abraço também na Daniella e nas crianças. Tchau!”

Paulo Marques
Enviado por Paulo Marques em 24/08/2007
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