Vidas vazias

I

A noite sempre foi o seu prazer maior. Trabalhava duro o dia todo para que lhe fosse reservada a noite. Os bailes, as moçoilas de lábios largos e sorrisos pudicos, cabelos esvoaçantes aos embalos dos frios ventos regionais; eram realidades aguardadas. Principalmente nas noites dos finais de semanas.

A lida diária consistia no manejo com o gado. Providenciava toda a alimentação, os medicamentos e a matinal ordenha. Labor cansativo, porém, prazeroso, haja vista, a grande maioria de sua geração cresceu auxiliando os pais naquela mesma rotina.

Antônio trabalhava há dezesseis anos para o mesmo senhor: dr. Aristides Passos, médico, merecendo deste a consideração de filho. E tal consideração dava-lhe a liberdade de confidenciar patrão-pai certas particularidades: desposaria uma moça somente depois que tivesse a sua gleba e desta pudesse extrair o sustento.

O trabalho na fazenda exigia muita dedicação no manuseio. Antônio, no entanto, jamais se esquivou de qualquer tarefa. Fato que o prestigiou com a gerência da fazenda, isentando o proprietário de preocupações relacionadas ao rebanho, principalmente.

Às sextas-feiras e sábados, Antônio não abria mão de suas andanças noturnas. Afinal, como bom rapaz esse prazer era natural. Especialmente a ele que trabalhava todos os dias da semana e cuidava da mãe viúva e três irmãos menores. Perdera o pai aos doze anos e desde então se tornara arrimo de família, embora a mãe o auxiliasse sobremaneira.

Por sorte o pai deixou algumas vaquinhas e um bom pedaço de terra, o que auxiliava no sustento da família. A mãe saudável e animada esquecia-se um pouco do trabalho doméstico e plantava, tratava do gado. Administrava as plantações feitas por meeiros em suas terras.

Antônio não enamorava. Justificava-se que embora todas merecessem respeito, nenhuma até a data tinha-lhe despertado amor. Conhecia uma ou outra, dançavam, conversavam, mas na hora de assumir um relacionamento, não hesitava em afastar-se - afastamento delicado, sem ferir.

Afora os pequenos percalços inerentes à existência humana tudo transcorria dentro da normalidade. O trabalho aliado à confiança do patrão, a mãe e os irmãos. Sentia falta que alguma moça lhe interessasse, despertasse o amor guardado naquele peito ressentido.

II

Sexta-feira, Antônio no decorrer das tarefas, punha-se a imaginar onde iria à noite. Dr. Aristides, como de costume passaria o final de semana na fazenda. Em breve chegaria; descia do carro e procurava imediatamente Antônio para relatar-lhe toda a rotina da semana na fazenda. Passados quinze minutos, aponta na estrada a camionete de dr. Aristides. Chegou. Desceu aquele homem alto, cabelos grisalhos, cútis muita clara, nariz grande e avermelhado, roupas brancas (vinha direto da clínica), semblante cansado mas um sorriso espontâneo que não assustava a ninguém. Além de profissional dedicado, tinha pelas pessoas um grande apreço. Tratava a todos com fineza. Mas, notoriamente o tratamento para com Antônio tinha algo bem diferente - patriarcal. Pareciam pai e filho, dialogando.

- Boa tarde, Antônio! Como está você e como foi a semana?

- Boa tarde, dr. Aristides. Estou muito bem, graças a Deus! Respondeu Antônio com entusiasmo, continuando: - e o senhor teve muito trabalho durante a semana?

- Sim filho, muito trabalho. Respondeu dr. Aristides, soltando em seguida um suspiro.

Dona Alcina, esposa de Dr. Aristides, após cumprimentar a todos em volta, inclusive Antônio, foi logo entrando. Estava cansada. As viagens sempre lhe alteravam a pressão arterial. Descansaria um pouco, depois voltaria a estar com todos, habitualmente.

Dr. Aristides e Antônio já caminhavam pelos currais, pátios, conversavam, apontavam, abanavam os braços. Parecia uma cena cinematográfica. Somente quem os conhecia tinha a certeza de que estavam travando o mais afável diálogo. Afinal, eram dezesseis anos de convivência e de inteira confiança.

Após relatar tudo ao patrão, Antônio foi terminar umas tarefas. Dentro de poucas horas estaria num terno de roupas simples, mas bem engomado e atraente – capricho da mãe. Dizia com frequência: “uma bela noite, comparada a uma bela mulher, merece uma vestimenta adequada.” Mas antes, porém, dr. Aristides o chamaria para que tomassem uma cerveja juntos – ocasião em que eliminavam as rotinas da fazenda e debatiam assuntos descontraídos.

- Venha Antônio. Gritou dr. Aristides.

Dona Alcina já tinha preparado alguns petiscos. Dentre eles o que sabia que Antônio gostava muito: frango a passarinho.

- Antônio! Dr. Aristides bradou mais uma vez.

- Subirei logo dr. Aristides. Estou terminando de curar um bezerro. Em poucos minutos...

Dr. Aristides o chamava, mas nunca o esperava, quando Antônio subia já o encontrava com os lábios brilhando de gordura e a garrafa de cerveja pela metade. E desta vez não foi nada diferente: dr. Aristides lambuzado e a cerveja com menos da metade, pois, desta vez, Antônio atrasou-se um pouco mais.

Sentou-se e D. Alcina cordialmente estendeu-lhe um copo. O local era propício para uma cerveja, uma boa prosa. Uma mesa rústica comprida com bancos largos e confortáveis. Embora habitual, parecia que a cada vez era tudo novo. Dr. Aristides foi à geladeira e trouxe uma cerveja que merecia ser degustada com todo prazer. Tomou o primeiro gole. Realmente estava deliciosa. O calor de fevereiro começava a amenizar com o entardecer e, obviamente, numa sombra como naquela varanda.

- E os namoros, Antônio? Tem alguma que esteja gostando? Indagou dr. Aristides com um riso paterno estampado no rosto.

- Não, dr. Aristides, estou ainda à cata de alguma. Como o senhor sabe nos finais de semana sempre aparece alguma que, ao final, concluo não me interessar.

- Não se precipite, filho! Você conhecerá a pessoa correta que o transformará. E, ai sim, conhecerá o amor e vibrará com ele. O verdadeiro, o real.

- Eu tenho certeza que sim, dr. Aristides. Não me apresso em relação a ter alguém simplesmente por ter. Quero ter alguém que me faça feliz e que eu a faça também. Tem de haver reciprocidade numa relação.

E tomaram bastante cerveja, jogaram conversa fora até o início da noite. Antônio despediu-se de dr. Aristides e dona Alcina e com passos largos dirigiu-se para casa. Sairia mais tarde. Tinha que se preparar: um bom banho e colocar a roupa que a mãe trazia sempre bem passada e engomada. Chegou a casa. Foi estar com a mãe que sempre abria o sorriso quando o via.

- O jantar está pronto, Antônio! Disse carinhosamente a mãe.

- Mãe, obrigado! Comi muita coisa na casa do dr. Aristides que não tenho mais fome.

- Fico demasiadamente contente, filho! A fórmula que você usou para conquistar a confiança da família Passos, especialmente o dr. Aristides que o considera como filho. – A mãe falava com certa emoção.

- Não houve nenhuma fórmula, mãe! Houve trabalho honesto e digno durante todos esses dezesseis anos. A confiança e o respeito pela minha pessoa vieram gradativamente, com o passar do tempo. E confesso à senhora que tenho tanta admiração por toda a família Passos que a considero como minha também.

III

Pegou o carro e saiu. Prometeu à mãe não varar madrugada. No outro dia a lida na fazenda o aguardava e jamais fugiu às suas responsabilidades. Foi a um baile promovido por uma turma de formandos do curso secundário. Esteve com amigos, conversou, dançou com algumas moças da localidade.

A noite estava sendo muito proveitosa; encontrou amigos que há muito não os via. Sentiu vontade de tomar uma cerveja. Foi ao bar, ao fundo do recinto. Aproveitou para observar as pessoas conhecidas que porventura ainda não as tivesse cumprimentado. Na penumbra, avistou uma pessoa que ao longe apresentava traços fisionômicos de Silvana - velha amiga do curso secundário que também após a formatura não a encontrara mais. Deixou a ideia de ir ao bar para ocasião oportuna e dirigiu-se para o local onde estava supostamente Silvana. Era realmente Silvana. Abraçaram-se, conversaram bastante e Silvana acompanhada por algumas amigas fez questão em apresentá-las a Antônio. Dentre as amigas apresentadas, Antônio imediatamente se identificou com uma que trajava um vestido azul-claro com detalhes brilhantes, cabelos escuros, olhos pretos grandes contornados com uma maquilagem que realçava ao ponto de chamar a atenção: lindos, boca, sorriso receoso. De todas observadas até aquele momento, Antônio não teve dúvidas: foi a mais bonita e a que conseguiu fazer com que esquecesse a cerveja. Não arredou pé dali. Tinha que convidá-la para dançar. Convidou-a. A bela moça assentiu com aquele sorriso de quem está querendo se soltar, mas algo lhe prendia.

Durante a dança, Antônio, atônito com a beleza e meiguice daquela moça e, sentindo o coração pulsar mais acelerado, a boca seca, a voz oscilante; uma felicidade inexplicável.

- Conheço quase todas as pessoas desta localidade e, sinceramente, não me lembro de você. Tem raízes familiares aqui ou está passeando? Indagou Antônio com certa timidez.

- Tenho raízes sim. Meus pais moram aqui. Aliás, sempre moraram e não desgrudam daqui por nada. Eu, na verdade, tive que me mudar em busca de estudos e trabalho. Moro e trabalho na cidade vizinha de Sapinópolis. Sou professora numa escola estadual de ensino primário.

- Então estou diante de uma mestra? Falou Antônio tentando descontrair.

- Não, não! Apenas uma educadora primária. Respondeu com firmeza a bela moça, fitando-o nos olhos.

- Desculpe-me a displicência. Não perguntei o seu nome.

- Meu nome é Vânia Álvares Pinheiro. E o seu? – Ela tinha agora a voz e o olhar mais firmes.

- O meu é Antônio Silveira de Araújo. Respondeu com mais desenvoltura e sentindo-se na obrigação de dizer o nome e o sobrenome.

Sentaram-se. Ambos estavam mais à vontade. E essa espontaneidade permitiu-lhes amiudarem a conversa, estendendo-a aos laços familiares. Momento em que Antônio se lembrou da origem familiar de Vânia.

Família, aliás, muito conhecida de seus pais. Subitamente, encantado com toda aquela beleza, Antônio foi aproximando-se dos lábios carnudos de Vânia, sem que houvesse manifestação repulsiva, beijou-os por longo período. Repetiu por outras muitas vezes, cada vez com mais intensidade e percebia que Vânia também o fazia. Como havia tratado com a mãe que não vararia madrugada, sentiu que desta vez infelizmente não ia conseguir cumprir. Estava seduzido por tudo aquilo que estava acontecendo naquela noite. Podia afirmar que jamais sentiu sensação semelhante; brotava uma coisa suave e pacífica no peito. Mas era muito cedo para sentir aquilo, pensou. Conhecera Vânia naquela noite, mas parecia ser uma convivência de muito tempo.

Após um pequeno incidente com um rapaz que se aproximou de Vânia, dirigindo-lhe gracejos, forçando Antônio a se indispor com o cidadão, ela consultou o relógio, constatando passar de duas horas. Convidou Antônio a irem embora. Afinal, não tinha costume de ficar até tão tarde (ou cedo...), e o incidente... Foram embora. Antônio acompanhou até a sua casa e na despedida, sem rodeios, disse-lhe que gostaria de vê-la muito em breve. Preferencialmente amanhã. Lembrou-se do horário e remontou a frase: - vê-la ainda hoje, à noite. Vânia parou por uns minutos, como se buscasse na memória algum compromisso previamente marcado. Voltou-se concordando expressivamente contente.

IV

Apressou-se em chegar a casa. A mãe já devia estar preocupada. E estava.

- Por que demorou tanto, Antônio? Perguntou a mãe com certa aflição.

- Perdoe-me, mãe. Realmente me esqueci do horário. Mas eu não tive como controlá-lo...

Interpelou a mãe, curiosa:

- Estou achando você diferente de outros dias. Você está muito contente. Seus olhos brilham como jamais brilharam. Mãe não erra: está irradiante.

- Mãe! Realmente estou e não conseguiria mentir para a senhora. Aliás, se tentasse a senhora perceberia logo. Conheci uma pessoa hoje muito especial, muito especial. O nome dela é Vânia, da família Pinheiro.

- Antônio, creia! Deve ser uma excelente moça. A família é da mais alta estirpe. Eu e seu pai sempre tivemos um ótimo relacionamento com essa família.

Conversaram por mais algum tempo e foram se deitar. Antônio não conseguia dormir. Tentou, tentou. O pensamento não desgrudava de Vânia. Já estava ansioso para chegar a próxima noite e reencontrá-la.

Habitualmente, chegava à fazenda às seis horas. Cochilou e somente às sete e vinte conseguiu se levantar e saiu feito louco. Chegou às oito horas à fazenda. Avistou dr. Aristides na varanda, que ao vê-lo, tranquilizou-se.

- Bom dia, Antônio!

- Bom dia, dr. Aristides! Perdoe-me o horário. Tive uns probleminhas intestinais que me privaram de sair pela manhã.

- Antônio, querido! Conheço você há dezesseis anos e sei que isso não foi a causa. Estive preocupado até ver você abrindo a porteira. Agora estou muito alegre, uma alegria incontrolável. Tenho certeza que há uma mudança pairada no ar. Sua fisionomia hoje, como bem a conheço, é de um homem que esteve com alguém, ontem à noite. E não é qualquer alguém; mas alguém que fez você sentir-se feliz. E saiba que estou sempre à disposição para ouvi-lo, meu filho. E não se preocupe em relação ao horário, nem férias você tira...

- Obrigado, dr. Aristides. Fico literalmente envergonhado em atrasar às minhas responsabilidades, principalmente pelo tratamento que me é dispensado pelo senhor e por toda a sua família.

Aliviado, dirigiu-se ao curral para acompanhar a ordenha. Cumprimentou cordialmente a todos. A cordialidade era natural de Antônio, mas tinha algo a mais naquele dia. Deixava transparecer uma intensa alegria, que contagiava a todos.

Trabalhou todo o dia com aquela expressão. Às quatro horas, horário em que a maioria dos colegas ia embora, dr. Aristides apareceu na beirada da varanda e o chamou:

- Antônio, venha logo para uma cerveja bem gelada!

- Sim, dr. Aristides não tardarei.

E desta vez não tardou mesmo. Chegou no momento em que dr. Aristides provava o primeiro gole, que meio engasgado resmungou:

- Entre, venha e sente-se aqui.

Entrou e sentou-se. Dona Alcina com a mesma solicitude de outrora lhe estendeu o copo cheirando a limpeza. Cabendo, pois, a dr. Aristides enchê-lo rapidamente. E foi feito com presteza.

- E a nova pretendente, Antônio? Indagou dr. Aristides com um sorriso, desta vez bem largo, estampado no rosto.

- Dr. Aristides o senhor sabe que o tenho como pai e seria idiotice tentar ocultar alguma alegria que estivesse me ocorrendo. Conheci, na verdade, uma moça ontem no baile de formatura, Vânia. Uma linda mulher. E confesso-lhe que desta vez estou sendo vencido, ao contrário de outras aventuras que simplesmente aconteceram.

E dr. Aristides atencioso às palavras de Antônio, tomou um gole de cerveja e ensaiou uma filosofia:

- Antônio o que nos faz bem tem de ser vivido com intensidade. Aproveitado até a última gota. Você conheceu Vânia ontem e pode-se notar que é a mulher que você vinha procurando há muito tempo. Diferente de outras que você sempre preferiu se esquivar. Portanto, vá, procure-a, converse e se estiver convicto proponha-lhe o namoro. Um relacionamento mais frutífero. Você merece ser muito feliz.

V

Vânia com aquele jeitinho agradável foi-lhe recebendo com beijos. Isso, no entanto, animou Antônio a tomar a iniciativa em propor-lhe que namorassem. Vânia desta vez não precisou consultar a nada nem a ninguém. Aceitou de imediato. Convidou-o para entrar e conhecer seus pais. Antônio sentiu-se bem mais desembaraçado ao perceber a gentileza com que os pais de Vânia o receberam. Eles se lembraram de toda família de Antônio, o pai que morrera tão novo e a mãe por ter lutado quase sozinha para angariar sustento e educação para as quatro crianças. “Mulher de fibra, dizia o pai de Vânia.”

O namoro ia de vento em polpa. Embora houvesse alguma dificuldade pelo fato de Vânia trabalhar em Sapinópolis e, claro, tanto para ela vir ao povoado como Antônio deslocar-se 77 quilômetros com certa frequência. Encontravam-se a cada quinzena quando Vânia podia vir. E com a abertura de uma extensão da escola estadual de Sapinópolis em Ponte Alta, Vânia estava tentando transferir-se. Estava cansada de cidade grande; tumultuada, custo de vida elevado, intranquilidade. E além de todos estes detalhes: estava amando.

Antônio continuava sua lida na fazenda sob os olhos paternos de dr. Aristides. Este, entretanto, já trazia preocupações a Antônio, por vê-lo outro dia após pequeno esforço, muito cansado, com falta de ar e uma tosse incessante. Fato que provocou Antônio a chamar dona Alcina comunicando-a o ocorrido e que a partir daquela data não permitiria que ele se esforçasse. Mas tinha de ser de uma forma sutil para não feri-lo.

VI

Passados meses, Vânia conseguiu o pretendido: a transferência. Iria a partir de agora voltar a morar em Ponte Alta, ao lado dos pais e Antônio. Afinal, sentia que o namoro com Antônio ia concretizar-se em casamento. Mas era cedo para pensar naquilo. Precisava conhecê-lo mais e ser conhecida... O trabalho, o qual apesar da sua experiência ia exigir mais, pois, a transferência não fora para professora, mas para coordenadora. Ia coordenar a escola em Ponte Alta. Dr. Aristides atendendo ao pedido de Antônio contatou alguns conhecidos de Sapinópolis e em curto período conseguiu a transferência de Vânia.

Chovia torrencialmente naquela manhã. Chegou à fazenda e sentiu algo estranho no ar. A casa fechada. Não podia estar aberta por ser muito cedo e estar chovendo. Pensou por um instante ser imaginação infértil, precipitação talvez... Foi à porta da sala: fechada, trancada. Correu à porta da cozinha. A um canto estava dona Alcina em prantos. Antônio, apavorado foi logo lhe perguntando:

- O que houve dona Alcina?

- Vá ao quarto e veja, Antônio! Exclamou dona Alcina entre soluços.

Antônio, hesitante, foi adentrando e logo chegou ao quarto. Dr. Aristides estava imóvel sobre a cama, olhos abertos, a boca entreaberta escorrendo um fio de sangue... Antônio tomou-lhe os pulsos: nada. Colocou os dedos abaixo da orelha e nenhuma pulsação. Não teve dúvidas: estava morto.

Antônio sentou-se a um canto do quarto, desolado. Chorou como uma criança ao sentir-se desprotegida. O privilégio de ser um homem com dois pais tinha chegado ao fim; podia-se sentir completamente órfão. Levantou-se e foi acudir dona Alcina que estava inconsolável, encostada na pilastra da varanda.

Precisava que Vânia estivesse ao seu lado naquela hora de grande tristeza. Pediu a um funcionário que a buscasse. Não tardou e Vânia estava ao seu lado. Todos os filhos de dr. Aristides já haviam chegado e auxiliados por Antônio e Vânia tinham tomados as providências dos serviços funerários. O sepultamento seria em Ponte Alta, por exigência do próprio dr. Aristides.

Antônio, embora muito abatido, não poderia deixar a rotina da fazenda. Pelo menos, por enquanto. Os filhos de dr. Aristides, sempre muito amáveis, continuaram o que o pai iniciara: Antônio à frente da administração da fazenda.

Meses após o falecimento de dr. Aristides, os filhos marcaram uma reunião na fazenda e convidaram Antônio para participar. O inventário já estava em fase final, dada a organização de dr. Aristides. Iniciada a reunião, apresentaram a Antônio um documento, testado pelo pai, o qual lhe deixava uma gleba enorme. Assustado, emocionado e meio sem jeito, Antônio disse aos filhos que não poderia aceitar; era muita terra. Imediatamente os filhos falaram em coro que era a vontade do pai, portanto, devia ser cumprida – corroborado por D. Alcina.

VII

O horário do almoço se aproximava e, claro, a fome misturada ao cansaço começava a intimidar a capacidade de pensar. Não obstante, a idade também favorecia o processo.

- A senhora prefere descansar um pouco, D. Alzira? Propõe o médico, solícito.

- Realmente estou cansada, dr!

- Iremos então almoçar e à tarde retornaremos; toda informação tem fundamental importância para o nosso trabalho. – Disse o médico, levantando-se.

D. Alzira, conduzida por um filho, entra no carro. A visão precária e os movimentos muito lentos. Mas o pensamento sempre ligado em Antônio – filho querido e amado. Não mediria esforços para vê-lo bem.

Retornou às 14:00 h. O médico na sala de cabeça baixa – lendo –, ao ouvir seus passos, levantou-se, recebeu-a carinhosamente e a conduziu até a uma poltrona confortável, sentando-se ao seu lado, munido de prancheta e caneta.

- Podemos continuar D. Alzira? Sente-se confortável? Pergunta o médico.

- Estou muito bem, dr, obrigada! Responde D. Alzira, vigorosa.

D. Alzira, empolgada, continua as explanações:

- Testemunhei um sonho ser jogado, despretensiosamente, no rio. Meu filho Antônio, a vida toda se envolveu com o trabalho, como relatei para o senhor. Dr. Aristides tinha por ele verdadeira adoração: era seu filho, dizia orgulhosamente. Antônio pretendia desposar Vânia, amava-a. Antes, porém, precisava construir uma moradia adequada em suas terras, algo aconchegante que abrigasse de forma digna a amada. Deixou a fazenda sob a resignação dos filhos e de D. Alcina – queriam-no morando na gleba, mas que continuasse a administrar a fazenda. Por fim, Antônio conseguiu indicar um substituto. Iniciou sua obra sonhada. Esmerado, finalizou-a em tempo recorde. Podia se casar. Estava radiante por tudo. Contudo, o pior ocorreu numa tarde de sexta-feira, chuvosa, quando Vânia seguia num veículo utilitário para a escola. Numa descida muito íngreme o motorista perdeu o controle do veículo. Este desceu a ribanceira veloz como um raio, entre cambalhotas. Eram oito a bordo. Sobraram apenas três, hospitalizados. O mundo acabou para Antônio a partir daquela notícia funesta. Perdeu completamente a voz, tornou-se um afônico crônico e parado no tempo como se mirasse um ponto distante. Antônio moldou um mundo exclusivamente seu – intocado. Um morto-vivo.

D. Alzira, bastante emocionada, parou um pouco para respirar. Pediu um copo d’água e lacrimejante indagou:

- Dr. há possibilidades de Antônio ser curado desses males que o atacam?

- D. Alzira, nossa equipe tem trabalhado incansavelmente para desvendar todo o mistério desse choque, mas confesso-lhe, corajosa e carinhosamente, que eu estou bastante desanimado...