próximo a Orom

por irmos para o mesmo lugar que achamos coveniente fazê-lo juntos, e é verdade que fazia algum tempo que não conversávamos além dos tudobens das situações corriqueiras, ou inventamos a necessidade de ir, quando um levantou a ideia e a fez visível sem querer, com um sopro expirante de alívio, ou disfarce do incomodo do encontro, involuntário balbucío "estive pensando em ir...", e as palavras a partir de feitas conspiram a seu favor, direcionam as ainda projetadas, um exército marcha sobre a racionalidade rumo a um objetivo desconhecido por ela, tece caminhos entre os matagais que o frequênte acaso se embrenha, aproveita-se da distração dos olhos e sua limitada capacidade de vê-lo, então as frases seguintes já estão trilhadas e não há mais volta para o que foi dito, e é por isso que parece comum nestas ocasiões umas do tipo "podemos sair cedo...". saímos. dizer que não havia um esforço humanitário de ambos para manter a trivialidade, uma naturalidade íntima, que pelo próprio esforço mostrava-se artificial, seria heresia, e confesso que pra mim era um pouco mais desconfortável, talvez confortável na mesma medida, já que dirigia. mas foi lá por perto de Orom que me perguntou se ainda me lembrava. que me lembrava, era óbvio. esse é justamente o motivo pelo qual uns tipos de perguntas já nascem mortas. disse que sim, mas completei a resposta com sóques e entretantos, pois não seria de tudo, todo, e todos que me lembrava. as coações de repente voltaram em estado físico, cada nova hipotética inserção de contexto que fisgava da atmosfera imaginária do que dizia furava uma parte de meu corpo, breves diversões com situações específicas e personagens singulares, enfim, as falsidades ganhando sua composição orgânica nua, e fluida. o diálogo se desenrolou de tal forma que não percebemos a passagem por Orom, sendo que houve um vago comentário na saída sobre uma possível parada para almoçar ali, e quando percebemos que não havíamos percebido, rimos risos cronometricamente pensados, e atribuímos a passagem despercebida ao diálogo desenvolto e imerso; acontece na estrada. chegamos já do meio para o fim da tarde. buscamos o hotel, do qual adentramos o anoitecer; o lugar tem a noite de pedras, e a lua liquidifica-se sobre elas - caminhamos, tentando fixar seu cheiro nos sapatos. no bar, comemos do típico, vinho aceitável para o momento, um que outro cumprimento, nada efusivo. algum dos que estavam há duas mesas na direitatrás me olhou muito, quase reconhecendo, diria; e uma que olhando ao meu lado riu embriaguezes, "por que não me escreveu mais?", e o riso retornou com o mesmo teor; as palavras buscam um papel, provas, pensei. sucumbimos em horas marcadas por olhares dispersos, expressões antagônicas, barulhos desnorteantes, miradas incisivas ou bonachonas, luzes engolidas pela meianoite, madrugada, silêncios internos, nos perdemos no espaço da nossa mesa. por irmos para o mesmo lugar que achamos coveniente fazê-lo juntos. ficaríamos até segunda, cedo, mas tomamos café e uma micro-amnésia se estabeleceu, e sem dizermos nada cada um estava pronto para retornar. ainda era estranhamente cedo, como um ocaso convertido em aurora, o cedo ideal para se combinar de sair. saímos. o diálogo não conseguia se desenvolver, raízes seguravam seus pés quando tentavam avançar passos, de sua boca somavam pequenas interrogações afirmativas, quase sinceras na teoria de um hipócrita, as não-respostas respondiam. chegando em Orom, que naquele sentido fica ao pé da subida, usufruindo de uma resposta-silêncio, me perguntou se ainda me lembrava. a lembrança, por mágica, não poderia estar mais viva, o que a pergunta, por fazer-se, poderia supor. logo avistamos emergir à margem, em ruínas; algum sugere parar "vamos parar?", e isso faz o carro parar. andamos abrindo o lugar, surpreendentemente pouco surpresos, pondo a mão por desatenção sobre musgos, adjetivando abandonos geométricos curiosos, criticando as ossadas desarrumadas, com um cotovelo e meia face pra fora da terra, ou com as pernas arreganhadas, como se fossem forçadas, algumas ainda de bruços, espalhafatosas e sem vergonha. depois retornamos normalmente, estávamos habituados de novo, não precisávamos mais de perguntas nem nada para estarmos juntos, seguimos o silencioso retorno. na chegada estava tão cansado que não me lembro de tê-lo deixado em sua casa.

Henrique Pitt
Enviado por Henrique Pitt em 26/02/2018
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