O AMOR É TUDO

Deitado na cama imunda, lia um jornal amarelado pelo tempo, as bordas amassadas pelo manuseio constante. Parecia ler atentamente uma notícia como se fosse a primeira vez, embora já a tivesse relido inúmeras vezes. Folheou, em seguida, as páginas subseqüentes, apenas notícias velhas, a subida do dólar, desastres ecológicos, corrupção na política, coisas do gênero.

A certo momento, demonstrando aborrecimento, atirou o jornal no chão úmido da cela, e pousou o travesseiro encardido sobre a cabeça. Revirou-se na cama, ficou de bruços. Apertou os olhos com força, tentou dormir; em vão. Suas costas doíam, o colchão de palha machucava a coluna. Praguejou, pôs as mãos sobre os olhos, talvez para conter as lágrimas que escorriam pelo rosto pálido. Súbito, saltou da cama e correu desesperado em direção às grades, segurando-as fortemente por algum tempo, até suas mãos começarem a arder feito brasas.

Sentou-se, por fim, numa caixa, cruzou as longas pernas, os cotovelos fincados nos joelhos. Com as mãos em forma de concha, tampou completamente o rosto. Pela sua mente, como num inconveniente projetor, passaram (mais uma vez) os acontecimentos da semana anterior. Recordou-se, com aparente tristeza, da imagem da mãe, antes de falecer – a idade já bem avançada, o coração com problemas. Crivou os dentes. Detestava lembrar da mãe, que morrera enfartada ao saber do ocorrido. Um suspiro profundo saiu de seu peito.

Tentando afastar essa incômoda recordação, que o deprimia, pensou na namorada. Um sorriso esboçou-se em seus lábios, ao lembrar da beleza extraordinária daquela garota; parecia demonstrar certo orgulho.

Seu último encontro fora há uma semana. Naquela tarde, foram pescar no rio que passava ao lado da vila. O rio estava calmo, as águas corriam lentamente pelo leito, como se estivessem cansadas da rotina invariável. Entraram na canoa do pai dele; a remadas firmes, partiram para mais adiante, no trecho em que o rio se alargava e as águas eram tão límpidas que se podia ver o fundo. O verde-vivo das algas, de uma beleza encantadora, chamou por instantes a atenção do casal. O balanço da canoa dava a impressão de que as algas dançavam uma valsa.

Ele remava para o meio do rio, onde sempre havia mais peixes. Estava disposto a pescar pelo menos um; a mãe dela sabia fazer um peixe assado no fogão à lenha, que dava água na boca só de pensar. Guiava a canoa com remadas compassadas, decididas. Seus braços eram fortes, musculosos; pescava diariamente com o pai, velho pescador. Vez ou outra, uma gaivota cortava o céu, cujo vôo gracioso chamava a sua atenção.

Apesar do jeito rude e das mãos calejadas, ele era um romântico – talvez o último dessa espécie em extinção.

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– O amor é tudo – dizia o pai, nas raras vezes em que conversavam sobre mulheres. – As mulheres são seres divinos e devemos dar a elas, como devoção, todo o nosso amor. Tudo o que somos devemos ao amor que sentimos por uma mulher. – O pai, homem de aspecto sisudo, tinha na religião a base de sua conduta.

No teto úmido da cela, ele avistou uma mosca, que estava ali há cerca de três dias. Sempre na hora da refeição, descia para pousar no prato da comida. Satisfeita, voltava ao seu lugar. Era a sua única companhia.

Olhou à sua volta, e constatou a pobreza do ambiente – uma cama (se é que podem ser chamados assim dois caixotes com um estrado por cima); uma mesinha para colocar as refeições; e uma caixa que servia como banco. Numa saliência na parede, havia colocado o rádio de pilha, para suavizar as horas de ócio, que eram todas. Nada mais existia na cela.

Fixou os olhos, ainda vermelhos por causa do choro de momentos atrás, na sólida porta de ferro, que fechava a cela; impossível de ser arrombada. Abaixou a cabeça, desanimado. Levantou-se do caixote, onde estava sentado, foi para a cama; o cansaço era visível. Caiu pesadamente sobre o frágil leito improvisado, que estremeceu com o impacto.

Seus olhos começavam a pesar. Ele não quer dormir, não pode dormir; sabe que poderá ser fatal – eles podem, a qualquer hora, entrar ali, e linchá-lo.

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Há uma semana, o corpo da namorada fora encontrado sem vida à beira do rio, com evidentes sinais de sevícias. A culpa recaiu sobre ele. Mais do que depressa, aqueles fanáticos o levaram para a cadeia. Cegos pela religião, e zelosos dos bons costumes, não poderiam permitir que alguém como ele continuasse solto pelas ruas.

No dia seguinte, seria o julgamento. Tinha certeza de que o condenariam; até a mãe o chamara de demônio, antes de tombar, traída pelo coração enfartado. Não tinha chance alguma de ser libertado. O povo ficava ao redor da cadeia; todos demonstravam no rosto expressão de revolta. A toda hora alguém olhava pela janela da cela, protegida por grossas grades, gritando que deveria morrer. Por isso, receava dormir. Era preciso aproveitar todo o tempo que ainda lhe restava.

Seria ao amanhecer o julgamento. Dentro de mais algumas horas o carrasco entraria pela porta de ferro, sem cerimônia. “Chegou a sua hora, demônio!” – certamente diria o algoz. Qual seria a pena? Talvez fosse enforcado, fuzilado, ou mesmo apedrejado. Tudo era válido naquele lugar esquecido do mundo. Sabia que, em breve, já estaria morto; aquela gente não o perdoaria. Nem o fato de ter nascido no povoado, e seu pai ser um dos lideres, nada poderia salvá-lo da morte certa.

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Adormeceu.

A noite passou rapidamente. Ele teve um pesadelo horrível – estava numa fogueira, sendo queimado vivo pelos inquisidores. Despertou, assustado, o corpo todo banhado em suor. Sentou-se na beirada da cama, escutou a algaravia, lá fora. Todos já estavam reunidos à espera do julgamento. Eram seis horas, o julgamento seria às sete.

Começou a andar nervosamente pela cela; até que num momento parou e olhou para o teto, detendo-se numa grossa viga, a três metros de altura. Olhou para a sua colcha – grande o suficiente para o que tinha em mente.

Não hesitou um só instante. Rasgou em quatro tiras a colcha, dando um nó em cada dois pedaços; certificou-se se estavam bem amarrados. Em seguida, amarrou o rádio numa das extremidades da corda assim improvisada, rodou-o no ar e atirou-o para cima. Seus cálculos foram exatos, a corda passou com precisão pela viga. Puxou o caixote, e o colocou bem debaixo da viga; subiu em cima.

Com gestos nervosos, deu um laço forte em volta do pescoço, demorando-se nisso alguns minutos; aparentava receio. Balançou o corpo em cima do caixote, até este tombar de lado. Gritou. Em poucos segundos, tudo estava acabado.

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“O amor é tudo” – a frase do pai ecoou-lhe à mente, momentos antes de morrer.

Em seu rosto, como numa derradeira confissão, perceberam, depois, um sorriso, que julgaram ser de orgulho, como se demonstrasse a certeza de que jamais nenhum outro homem teria nos braços a sua amada.