O DESTINO DE ADRIELLY
 
As drogas me deram asas para voar, depois me tiraram o céu.
John Lennon
 
         Há dois anos afastada do magistério,  não sei por que, justamente hoje, me veio à memória a história de Adrielly...
      Ela era morena, estatura mediana,  cabelos compridos e cacheados, olhos negros, nariz fino, dentes branquinhos, corpo perfeito, linda! Entretanto, parecia que estava sempre ligada a duzentos volts. Que menina agitada! Não conseguia ficar sentada por mais de cinco minutos na mesma cadeira, não se concentrava nas atividades, perdia tudo a toda hora e possuía um vasto repertório de palavrões a que recorria para tratar gentilmente os colegas e quem mais contrariasse as suas vontades. Muitas vezes, fugia da sala para ficar, passeando no pátio ou namorando nas escadas. Outras, pulava o muro da escola e ia passear no shopping. Por isso, era conhecida como Pipa avoada ou Pipa, simplesmente. Preferia o apelido ao nome.
  Quase todos os dias, era encaminhada à  diretoria, por desacato aos professores, por ter-se envolvido em alguma briga com as meninas de quem roubava os namorados, ou por usar o celular, atrapalhando a aula.
     Por várias vezes, conversei com ela, durante o recreio, tentando descobrir o porquê daquelas atitudes, daquela agressividade. Dizia-me que não gostava de estudar, que ler, escrever, fazer conta, guardar nome de rio, estudar, Ciência, História, Artes, Inglês era “uma parada tipo nada a ver”, sua vocação era outra.
     — Qual é a sua vocação? Perguntei-lhe.
   — Ah, professora, eu gosto é de cantar, de aparecer, de ser famosa, entende? Meu pai acha que eu nasci pra ser cantora! Ele conhece um pessoal que pode me ajudar, se eu quiser, mas a diretora fica me embarreirando...
     — Você pode ser uma cantora famosa ou seguir qualquer outra carreira e a escola  será uma ferramenta indispensável para o seu sucesso, sabia?
     — Unhum! Tô vendo o sucesso que a senhora faz... Não é por nada não, D. Heloísa, mas só o que vejo é professor reclamando de salário, correndo de uma escola pra outra, pra conseguir se sustentar. De que adiantou a senhora estudar tanto e viver assim, trabalhando o dia toda sem ter nem o direito de saber se tá viva? A senhora já viu como os professores dessa escola têm cara de tristeza? Por isso é que eles implicam tanto com os alunos. É porque   a gente faz com que eles lembrem o tempo que perderam com escola! A senhora acha que eu tô errada? Acha?
     — Adrielly, as coisas não são bem assim. Os professores brasileiros realmente não são valorizados, mas a maioria ama a profissão.
    — Tá, me engana que eu gosto! Eu vou é meter o pé, enquanto eu sou jovem. A senhora ainda vai se orgulhar de ter sido professora da Pipa! E esse papo já deu, D. Heloísa!
     Aquela foi a última vez que Adrielly foi à escola. Na mesma semana, mais cinco meninas da turma também sumiram. Os meninos me disseram (bastante entusiasmados), que o pai da Pipa tinha formado um grupo de funk — “O bonde das entendidas” — as meninas ficaram famosas, estavam fazendo shows e bailes todas as noites e tinham até fã clube. — Agenda lotada, professora! Afirmaram em uníssono.
    E lá se foram seis jovens, arrastadas pela ilusão da fama! Como já era de se esperar, o surgimento de novos bondes fez com que o sonho daquelas meninas caísse por terra.
     Certo dia, encontrei Adrielly na rua. Estava tão mudada... perdera o jeitinho de adolescente, o brilho no olhar e o dom de falar pelos cotovelos. Estava grávida de um traficante e trabalhava para ele, nas imediações da escola, tentando seduzir outras jovens para aquele mundo que, por certo, já não a seduzia mais.
     Quando ela me avistou, veio correndo ao meu encontro e me abraçou emocionada. Tentando deglutir o bolo que se formava em minha garganta e disfarçar o meu espanto, fiz a velha pergunta:
     — O que você tem feito da vida, menina?
Ela baixou os olhos e com a voz embargada respondeu:
   — Bom, se eu posso chamar isso de vida, professora, então, eu tô me matando. A senhora não sabe o inferno que eu tô vivendo... Sabe, quando o Bonde acabou, me envolvi com parada errada e, por causa disso, mataram meu pai. Minha mãe jogou a culpa em mim e me expulsou de casa. Agora, se eu quiser conseguir o que comer e um lugar pra dormir, tenho que lavar roupar, passar, cozinhar enfim, ser escrava do pai do meu filho, fazer tudo o que ele mandar, direitinho, senão ele me bate. Olha só! — Disse, mostrando-me as marcas das agressões estampadas nas pernas, nos braços, nos cabelos sem cachos, nos dentes quebrados, nos olhos sem esperança...
    Senti uma dor aguda em meu peito e tentei segurar as lágrimas com mais uma pergunta:
     — O que é feito de suas colegas? Continuam cantando?
   Então, a Senhora não soube? A Tina, foi assassinada... porque sabia demais. A Dri e a Carol sumiram, acho que morreram também. —  Disse baixando a voz — A Grazi engravidou e virou mulher de bandido que nem eu. A Bia , essa tá por aí, roubando, bebendo e usando crack...
   Sem saber o que falar, abracei fortemente Adrielly e segui em direção à escola, buscando uma motivação que me fizesse esquecer a dor que aquele encontro deixara tatuada em minha alma...



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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 03/03/2018
Reeditado em 29/07/2018
Código do texto: T6269811
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