O PÃO NOSSO DAQUELE DIA
 
[...] Sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.
Ferreira Gullar

     Aproximava-se o mês de agosto e D. Maria Luísa estava organizando algumas atividades para a Festa do folclore, como: peças teatrais, coro falado, canto coral, danças típicas entre outras. Para não perdermos aula, os ensaios eram marcados todas as noites. Isso significava que teríamos de andar vinte e quatro quilômetros por dia, já que estudávamos na parte da manhã e nossa casa ficava a seis quilômetros da escola.
     Na sexta-feira, véspera das apresentações, a professora resolveu ficar conosco o dia inteiro, arrumando a escola, preparando as barraquinhas e acertando os últimos detalhes. Saíramos de casa às cinco da manhã, apenas com o nosso desjejum de café com farinha. Ficamos o dia inteiro sem comer e, quando terminamos de organizar tudo, já eram quase vinte e duas horas. A lua estava clara como o dia, mas nós todos estávamos com muito medo de passar pela frente do cemitério... Eu era a menor e a mais medrosa do grupo.
     Após o cemitério, havia um declive que tinha a fama de mal-assombrado. Contavam-se muitas histórias de almas penadas que, ora vinham pedir alguma missa para que pudessem descansar em paz, ora vinham cobrar alguma promessa.    Naquela noite, ventava muito e nós tínhamos combinado de descer correndo e de mãos dadas para que ninguém ficasse para trás.
    Repentinamente, uma bicicleta passou por nós, quase voando. Ouvimos um barulho de alguma coisa quebrando e o grito de um homem. Depois, o silêncio, o medo, a corrida desenfreada... Meu primo Gustavo tomou coragem e falou:
 — Ei! Pessoal! Vamos até lá ver o que aconteceu? Pode ser alguém carecendo de ajuda!
     Apenas Carlos concordou e foram os dois, enquanto o restante do grupo permaneceu ali, presos uns aos outros, tremendo de medo. Daí a pouco os meninos voltaram e Gustavo nos deu a notícia:
     — Vocês não sabem da maior! Seu Chico da Caiçara levou uma queda tão grande, que a bicicleta dobrou no meio. O pobre velho tá lá desmaiado. A gente amarrou a bicicleta numa árvore e forrou a cabeça dele com a camisa. Agora, o que me deu pena mesmo foi do saco de pão que ele trazia...
     — Por quê? Caiu no chão? – Valmir perguntou.
   — Não! Tá é lá, penduradinho no guidão da bicicleta! E sabe o que eu tô pensando? Que amanhã quando ele acordar, nem vai mais lembrar que comprou pão. O velho tá bêbado que só a gota, rapaz!
Ninguém mais comentou o assunto e continuamos a nossa caminhada, conversando, imitando as pessoas e engolindo a poeira da estrada. Subitamente, meu primo falou:
   — Carlos, acho que se a gente não pegar aqueles pães, os porcos vão comer é tudo! Você acha justo, depois de tudo o que a gente fez pelo velho, aqueles pães irem parar no bucho dos porcos? Vou lá buscar!
     Gustavo voltou ao local do acidente, pegou o saco de pães e veio correndo ao nosso encontro. Foi uma festa! Saciamos ali mesmo na estrada deserta, sob a luz da lua, a fome acumulada dos nossos dias e combinamos que jamais revelaríamos aquele segredo, pois se papai e meu tio ficassem sabendo, certamente nosso crime não compensaria.
     Essa talvez seja uma das lembranças mais bonitas que pude guardar daquele período de fome intensa, em que um simples pedaço de pão era suficiente para nos deixar felizes, nos fazer esquecer o medo de fantasmas e até desejar que alguma alma penada nos aparecesse, de vez em quando, materializada num bêbado ou num mendigo, trazendo-nos o pão nosso daquele dia.

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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 04/03/2018
Reeditado em 04/03/2018
Código do texto: T6270815
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