Paixões e cigarro

Dentre tantas coisas que me tiram do meu estado sóbrio está o cigarro, a minha metáfora. Quando o trago, levo a fumaça até os pulmões e resisto as feridas na garganta, pois o peso que fica na mente é maior do que qualquer coisa. A sensação de que estou errando enquanto erro e a premonição do que pode me acontecer amanhã me atingem mais. O maldito cheiro que metralha os meus nervos, me mata do olfato até as memórias. É assim que me sinto. Envolvido como um viciado que mede as consequências, mas que importância dá a elas? Toda vez que eu nos víamos era assim.

- Por que você está me olhando com essa cara? - sua voz me arrancou abruptamente dos meus pensamentos e eu sacudi a cabeça de imediato. - Está tudo bem?

- Está sim. - desenhei um sorriso no rosto.

- Tudo bem. - notei que com uma das suas mãos trazia um livro enquanto segurava a bolsa com a outra mão.

Concentrei-me nos seus movimentos suaves, mas buscava uma forma discreta para evitar me justificar em seguida. Sua expressão tranquila me deixava inquieto, mas eu continha meu mundo e jogava a culpa dos meus pensamentos em eu-mesmo. Não havia porquê me incomodar, mas mesmo assim o fazia, deixei que a tensão escorresse de forma sutil e cruzei as pernas para deixar o pé se movimentar, suspenso e levemente.

- O que lê? - disse. Dei mais um trago.

- No momento só vou estudar. Estou tirando o livro para ler no ônibus. Tenho que adiantar um pouco antes de chegar em casa. São tantas coisas para fazer que não sei nem por onde começar... - colocou o livro no colo e sorriu para mim como se quisesse que eu entendesse que me apressava para irmos embora.

- E a literatura? - perguntei

- Não tenho tempo.

- Ah, eu amo literatura.

- Bom, preciso estudar...

Recolhi seus gestos e fingi demência. Como se não tivesse entendido seu olhar de "preciso ir embora". Continuei com o mesmo sorriso e seus olhos encontraram os meus.

- Não se fazem mais paixões como antigamente... - e movi o queixo devagar em reprovação. Senti que me minhas palavras o afetaram de uma forma incômoda.

- Bom... - ele disse gaguejando. - Não é bem uma paixão... - olhou-me como se temesse um atrito ou principalmente algumas palavras específicas que deduziu a possibilidade de existirem... - Nós... é...

- Nós estamos aqui perdendo tempo?

- Não, não é perca de tempo também. - cada vez mais as palavras o incomodavam. - O que te deu hoje?

- Nada. - continuei sorrindo. - digo que hoje em dia não se descreve um sentimento como antigamente, mas quem sou eu para dizer que "antes eram assim, agora desta forma" se não um apaixonado por livros que acredita em cada palavrinha escrita neles? Não digo nada com convicção, mas vejo a vida de uma forma mais intensa e não vejo mal algum em chamar "isso" de paixão.

- Fui bem franco em dizer que sairíamos quando estivéssemos com vontade... você sabe...

- Entendo, ganho ou perca de tempo?

- Não é assim... - ele falou sem olhar diretamente para mim, como se temesse que as pessoas que passavam por nós, pudessem ouvir o que falávamos.

O parque no entanto não estava muito frequentado, tampouco acreditava que alguém realmente teria interesse em saber o que conversávamos. Olhei para o cigarro e por um instante observei o fogo que queimava o papel e o transformava em cinza a sensação era de que eu estava me transformando em cinza também. Era o meu sentimento que tragava a maldita fumaça tóxica.

- E por que logo eu? Não seria uma paixão? E se fosse outra pessoa, não seria paixão por essa pessoa? - disse. Chamei sua atenção novamente.

- Paixão é bem mais que isso, mas depende de quem sente ou de quem fala. - colocou seu livro no joelho e a bolsa estava solta no banco ao seu lado.

- Você sabe me definir em palavras o que é a paixão? Conheço outras pessoas também, mas não posso dizer que sou apaixonado por cada uma delas.

- Não, não sei.

- Você alguma vez escolheu por quem se apaixona? - ergui uma das sobrancelhas.

Houve um silêncio instantâneo e o ambiente mudou como que drasticamente. Na verdade era a brisa que parecia mais fria, ou talvez tivesse começado a senti-la naquele instante porque por um momento nada passou pela minha mente, mas logo fui arrebatado por uma questão. E se minhas emoções fossem mais exigentes com elas mesmas? Estas mesmas emoções que abriam feridas no meu peito.

E então como o cigarro as paixões são tóxicas, ninguém é sóbrio quando se apaixona; as paixões potenciam o sangue a correr mais frio e se não tomar cuidado a frieza afeta a alma. Mas de que servem as paixões se não justamente para nos tirar do doloroso estado sóbrio? Sem paixões talvez eu não sairia de casa para tomar um café, ouvir uma voz gostosa ou esperar algo de uma determinada pessoa. Se eu abrisse mão de cada uma delas e deixasse que os meus "certos ou errados" falassem mais alto eu me tornaria meu amigo?

As paixões dão combustível ao que existe e oscila, o calor humano que só se sente quando se deixa sentir. Mesmo que sua efemeridade seja o prazer que depois machuca, é como um ciclo. Talvez tenham validade pré determinada - não sei e não quero saber. Prefiro não saber, e deixo-me pensar que apenas supre um pouco do que me falta.

- O que você está querendo dizer com isso? Cara, se eu não corresponder, me desculpa. - enxerguei no seu olhar uma culpa real e era como se me divertisse.

- Não se sinta culpado. Você foi claro comigo.

- Eu gosto de você, não dessa forma. Não posso gostar dessa forma... você entende?

- Imaginei que diria algo do tipo. Até porque se assumíssemos quem realmente somos, não haveriam tantos encontros à penumbra e pessoas amargas e frias, dizendo que são traídas.

- Você se apaixonou por mim vai se sentir traído. Eu lamento.

- Tudo bem, sei que eu não devia.

O silêncio retomou e o ar continuava o mesmo.

- Você é apaixonado por alguém? - insisti.

- Amo uma pessoa... - vi a necessidade de desabafar no movimento que suas pálpebras fizeram para baixo enquanto debruçava suas mãos sobre os joelhos segurando o livro em uma delas. - Nós nos amamos. Espero casar com ela um dia.

- Espero que sejam felizes.

Ele me olhou temeroso e como se estivesse surpreso.

- Os homens são engraçados. - continuei. Lancei meu olhar acima das árvores do parque e admirei o sol que se punha atrás de uma nebulosa massa turva no céu. - Temos um mar de sentimentos diferentes e todos eles se resumem ao que falta em cada um deles.

- E o que falta nos seus?

- Amar algo ou alguém, talvez a mim mesmo.

- Interessante. Às vezes acho que seria melhor não amar.

- E nem se apaixonar?

- Também não...

- Não quero nem experimentar. - apaguei o cigarro. - Vamos nos encontrar ainda? Nos vemos à noite, ficamos juntos, acordamos tranquilamente e depois damos mais uma volta no parque pra conversar.

- Não sei... - li suas expressões dizerem um "melhor não." - Mas vou indo. Tudo bem? Não posso demorar para chegar em casa. Foi bom te ver.

Nos despedimos e acompanhei com os olhos os seus passos até sua imagem sumir da minha visão. Respirei fundo e o coração apertou. Era assim que me sentiria, exatamente como previa. Acendi mais um cigarro e procurei meu celular no bolso.

Tom Henri
Enviado por Tom Henri em 18/04/2018
Reeditado em 05/06/2018
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