O DIA DO REAJUSTE

Na manhã desta sexta-feira, acordei cedo e decidi fazer o reajuste presencial de matrícula e você, caro(a) leitor(a) não imagina o inédito que me ocorreria: uma troca de olhares ajustada ao encontro sublime do despertar de uma concupiscência carnal, sem o uso de qualquer palavra precipitada e inútil. Imagine a cena fílmica de um acadêmico prestes a reiniciar mais um semestre: acordar com a brisa da manhã, descer a ladeira da universidade, subi as escadas do prédio administrativo e sentar naquela poltrona preta fumaçada do corredor do DIACOL em uma fila quase insignificante e silenciosa; mas sentar discretamente sem olhar para o lado, e de repente cabisbaixo: vê um pé misterioso. Era um pé dentro de um tênis preto da Olympus. Os meus olhos desviados para o lado, como um zarolho, vão involuntariamente subindo; subindo suavemente, e notando que o tênis combinava com a calça jeans escurecida e bem ajustada naquelas pernas avolumadas, proporcionais ao belíssimo contorno de suas coxas.

Aquele monumento corporal que se anunciava a mim, neste movimento de levitação do olhar: era a cópia mais fiel da aparição de um Deus Grego, jamais visto antes. Branco, alto, magérrimo e consubstanciado. Eu só desejava descobri o nome daquele ser mitológico sentado ao meu lado naquela manhã de reajuste; cruzei minhas pernas, ajustando-me para o lado, e de modo levemente inclinado, agora, meu olhar já estava estabilizado em sua direção. “Por favor alguém vai precisar desse requerimento aqui para adiantar os processos?” - disse um técnico ao sair na porta do DIACOL. Ele levantou, sem hesitar, e foi em direção ao técnico pegar o requerimento. Meu olhar trafegava neste exato momento na direção retilínea ao bumbum dele, desenhado de modo idêntico ao contorno de uma maçã, naquele jeans ajustado. Tão macio como a massa suculenta de uma pera madura – Imaginei tocá-lo. Quando ele retorna à poltrona nossos olhares se cruzam frente a frente em reverência cósmica.

Aquele olhar lá de cima, e eu cá embaixo sentado, com o coração em taquicardia, pensando como a visão do Belo é uma sedução inatingível, como aquele seu amor de impossível alcance, pois o amor é alto; beira à perfeição mais elevada. Ele sentou- continuei pensando - aqueles lábios carnudos deixavam qualquer mulher desfalecida; era um homem muito elegante, de uma fineza no olhar que ofuscava uma luz de pedra de safira. - Qual seu curso? - Perguntei. Ele prontamente respondeu - Filosofia, sou calouro de Filosofia. Eu me derreti todo como Nietzsche se reduziu ao nada. Minha consciência estava torcendo para ser um “Letreiro”, mas respirei fundo e pensei - “Ufa, vai ter simbiose, eu como amante das artes, encontrei nesta manhã de reajuste, a profunda relação inefável da Filosofia com a Literatura.” Ao constatar este pensamento ouço um uma voz atrás de mim, e um suave toque nas minhas costas:

“Meu Querido, quanto tempo, veio reajustar a vida foi? pegou quantas disciplinas? vai sair quando desta universidade? Pegou Libras? e o TCC e o mestrado? " Ora, a pessoa sem o menor respeito ao silêncio que exige uma manhã de sexta–feira nublada; chega assim: me assaltando a alma, me roubando a atenção; me roubando a sensação de ter conhecido o Paraíso, me retirando daquela posição confortável em que me encontrava, e por fim, ainda roubou meu diálogo, roubou a possibilidade; àquela ínfima possibilidade. “O sistema voltou” - gritou o técnico da porta. E subitamente apareceu um maremoto de gente na escada, pareciam uma manada de bois que iriam ocupar aquele prédio, gritos para todos os lados, calouros abestados querendo comprovantes de matrícula, um círculo de mulheres tomaram conta de toda visão panorâmica do corredor, tudo escureceu, apagaram as luzes, a fila andou, ele foi empurrado drasticamente para longe de mim como um relâmpago, todos começaram a seguir adiante e eu já estava completamente D-E-S-A-J-U-S-T-A-D-O no final da fila.

E sem perceber, cinco criaturas do além, sorrindo alegremente, passaram na minha frente em grande irreverência ao veterano que ali estava. A distância entre nós - Eros e Eu- aumentava a passos largos. “Fiquem aí cambada de calouros, vocês não sabem da missa um terço a metade” – disse eu em voz baixa. Passaram alguns minutos, enquanto eu aguardava na fila, de braços cruzados, agora já em pé, ele tinha sido atendido primeiro, e na saída, veio caminhando ligeiramente e eu podia sentir o impacto do olhar novamente, quando ele; guardando o comprovante de matrícula, fechando o zíper da bolsa com apenas uma alça nas costas, passou ao meu lado e não mais olhou para mim.

Narrativas do cotidiano por Ricardo Neto

Ricardo Neto de Oliveira Mota
Enviado por Ricardo Neto de Oliveira Mota em 28/04/2018
Reeditado em 09/11/2018
Código do texto: T6321301
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