Fama & anonimato
 
Silvério da Silva amanheceu do mesmo jeito de todo dia como fazia há bem uns vinte anos.Ainda de cueca olhou o relógio,viu que já eram horas,pulou da cama e dirigiu-se ao banheiro.Aliviou-se,escovou os dentes – os verdadeiros e os falsos – abriu o chuveiro frio ,ensaboou-se ,enxugou-se e penteou os cabelos ainda negros e fartos ,com um certo orgulho.Muitos dos seus amigos estavam carecas ou tinham entradas muito acentuadas.
-Ao menos,isso!pensou,mas,não disse.

Vestiu um roupão e   dirigiu-se á copa,onde Alice,a mulher,também vestida num roupão velho e amarfanhado,presidia a mesa do café.
Na mesa,as coisas de todo dia:pão,queijo prato,granolas,leite desnatado com gosto de nada e banana cozida que ele não dispensava;tinha que estar bem madura e coberta de açúcar e canela.
-Bom,já vou indo.
-Deus lhe acompanhe,disse a mulher,mecanicamente como se estivesse ligada a uma tomada.
Todo dia ela faz tudo sempre igual...
Na rua semi deserta andou até o ponto do ônibus e dirigiu-se á repartição pública onde era agente administrativo.Papéis e carimbo,carimbo e papeis,paperimbo,carimpeis,oh vida!
Parada para um almocinho,sempre só ,os colegas não o notavam; Silvério da Silva tinha convicção de ser um completo  desconhecido.Não discutia futebol,não cantava a Glorinha,musa da repartição e nem trocava nenhuma palavrinha com o chefe além do prosaico bom – dia arrancado a torquês.
Fim de expediente,ônibus,desta vez lotado,uma breve passagem na padaria e casa pra que te quero.Ora,quero jantar,ver o Jornal Nacional e dormir.Para que outra coisa serve a casa?
Dia seguinte nada mudou; exceto a banana de café substituída pelo aipim com manteiga,pois ,era dia da feira do bairro.
Cumpridos os rituais,saiu á rua.E ai aconteceu a terrível mudança que o deixou tonto,assustado e estarrecido.
Na rua semi deserta,um bando de repórteres e fotógrafos  o esperava.Como uma horda de ursos famintos caíram sobre ele que tentava se equilibrar e ajeitar a gravata.
-Mas,o que é isso!?
-É o Sr. Silvério da Silva,pois não?
-S-sim,mas,o que significa isso?Sou um homem comum,um ninguém...
_Isso foi até ontem,agora o senhor é uma celebridade.Vamos até o jornal o senhor nos concederá uma entrevista.
Atônito,falou:
-Mas,que entrevista?Eu não sei nada.Nem tenho nada para contar.
Mas,já tinha sido enfiado dentro da caminhonete da redação ,vigiado por uma pressurosa senhorita magra e de óculos,como se fosse um sequestrado.
Calado desceu do transporte,calado subiu o elevador e calado  entrou na sala  ,sempre capitaneado pela magrela.
Durante a entrevista respondeu o que lhe perguntavam ,coisinhas comuns sobre sua vida,seu trabalho,sua família,seus sonhos.Instado,deu conselhos aos ouvintes.Acabou gostando da coisa.
No dia seguinte,mais repórteres,mais conversa,e uma entrevista na TV.Desta vez estava mais acostumado ,entrou na sala de maquiagem sem reclamar e falou bonito frente ás câmeras. Ao chegar á repartição todos os colegas responderam,sorridentes,ao seu bom dia e o chefe,in persona ,veio apertar-lhe a mão.
-Me acompanhe,se faz favor,senhor Silvério.Esta é a sua nova sala.Só para o senhor.Espero que goste.E,despediu-se com um breve sorriso.
Na manhã seguinte estava em todos os jornais impressos e televisivos.Pessoas comentavam e louvavam seus ditos e conselhos.Os vizinhos o cumprimentavam com respeito e até a bela moça,solitária,  do quarto andar lhe deu um sorriso.
A mulher chegou na sala munida de uma sacola de compras,iam ao mercado.Com um vestidinho comprado numa loja de departamentos e um torço na cabeça parecia muito comum;e,nem um pouco assustada com a inusitada fama do marido.
-Isso passa,é como uma gripe,pensou.
Sempre caminhavam de mãos dadas até o mercado do bairro,pertinho,pertinho.Mas,desta vez o trajeto foi complicado.Pessoas os paravam na rua para que ele lhes desse um autógrafo;uma velha senhora queria um remédio para reumatismo e uma jovem queria saber como seduzir o namorado.Um senhor gordo comentou sobre o preço dos alimentos – uma escorcha! – pedindo-lhe para se queixar ao governo.
-Como?!Nunca viu de perto nenhum governante.
Mas,veria.No dia seguinte,uma sexta – feira,o casal foi convidado para um coquitel no palácio para comemorar a inauguração de uma ponte superfaturada e,cuja construção  levou quase cinco anos para terminar.
A mulher foi ao cabeleleiro ,mas,conservou o vestido comprado na C&A para o casamento da sobrinha,anos antes.Ele ,de  terno e gravata,cabelos penteados  e barba feita.
No Domingo foram á inauguração de uma casa de shows,cujos cantores,celebridades reverenciadas pelo público e pela mídia,posaram  com o casal em inúmeras fotos.
Nesta altura ele já estava completamente feliz e  aceitando a fama com alegria e emoção.
Mais uma semana de fotos, entrevistas ,fotógrafos e repórteres á porta e conselhos ouvidos e acatados.
No começo da semana seguinte,quando se dirigia a uma escola onde faria uma palestra sobre o valor da educação,sempre acompanhado pela mídia,eis que surge na esquina ,um jovem barbudo,vestido de modo  relaxado e portando um violão.
Todos os repórteres correram para ele,meteram – lhe num carro e saíram na volada.
Na manhã seguinte nosso herói midiático acordou só;nem um carro de reportagem á porta,nem repórteres e fotógrafos de máquina e microfone em punho e nem a magrela de óculos esbaforida e protetora.
Nenhum vizinho o  espiava da janela e a bela do quarto andar fazia ginástica á janela,mas,sem sorrisos.
Entrou na repartição sem despertar frêmitos de emoção nem sinais de respeito ou inveja.E,voltou,sem explicações,para a sua antiga sala coletiva.
Foi andando para casa e,como ninguém mais se dirigia a ele,entrou num bar ,lotado ,para tomar um refresco.Ali,tanta gente,quem sabe!...
Mas,ninguém se voltou para vê-lo e ,ao olhar a TV ,descobriu o  porque ;o jovem barbudo e seu violão davam entrevista e conselhos para um público arrebatado.
 
 
Miriam de Sales Oliveira
Enviado por Miriam de Sales Oliveira em 01/05/2018
Código do texto: T6324252
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