Ziguezagueando 16

Falar!?Jovita sentiu profundamente o sentido, mas não o alcance das palavras que Hugo deslizava pelo abrir e fechar dos lábios; usou da compaixão como ouvinte, não quis isentá-lo ou imputar culpas, aquelas que ele tomou para si. Era um homem solitário, concluiu. Silenciou.

Não conseguiu ir longe na boca fechada...Putz! Pensou, porque logo eu para ser a interlocutora nesse caso , a escolhida para ouvir a borra de um homem de cinquenta, irrealizado na satisfação pessoal a dois...essa, não!

A ruivinha, sem a mínima noção das profundezas que passou mergulhar, retoma o diálogo: Hugo, se para você a experiência a dois revelou a solidão como parceira ideal, quem sou para apontar culpas ou isenções para você, como resultado da história que me conta? Até hoje, na instituição famíliar, fui recurso, não fonte de vida, e mais, não tive prática da convivência com parceiros, aquele que apareceu, nem chegou a ser. Tenho uma filha, hoje com dezesseis anos, desde seu nascimento me foi revelado o mundo. Sou provedora, depende de mim a sobrevivência dela, minha, e de minha mãe, que mora comigo. Se não trabalho não como.

Continuou: Certa vez , na recepção de um consultório médico, aguardando para ser atendida, peguei para ler uma revista feminina. Quando a abri, posei meus olhos numa reportagem, que trazia a reflexão do papel da mulher nos tempos, a origem da necessidade dela na família e no clâ.

Dizia o comentarista, que os estudos sobre o tema levou-o a conclusão de que no início dos tempos, devido a necessidade de alimento, e para manter a humanidade no caminho da sobrevivência, a mulher e o animal de carga foi a saída para o homem, daí o estabelecimento da família, podiam suportar grandes adversidades, sem risco da necessidade do uso da força. E de forma secundária, a mulher apresentou ser uma forma de gratificação sexual.

Dizia ainda na reportagem, que o casamento e a família, sempre foi uma forma de assegurar a sobrevivência da raça. O antropólogo, autor do material apresentado na reportagem, trouxe seu parecer, dizendo que da prática do homem e da mulher neste contexto nos tempos, foi que conseguimos até um certo ponto exercer ações positivas para as gerações que vieram, quase tudo de valor perdurável na cultura dos povos tem suas raízes na família. E que no núcleo familiar foi o campo para o homem e a mulher aprender a adequar-se em suas diferenças, e ao mesmo tempo, ensinar a busca da paz às suas crianças.

A doença maior nos relacionamentos é, segundo narrava o estudioso na reportagem, que a dificuldade do homem e da mulher na relação sempre foi não conseguir resolver suas diferenças , e ainda, a questão da realização pessoal a dois. Lembrou que a autogratificação é incidental no casamento, não essencial, e que sempre foram os melhores atores nestes temas aqueles que usaram a autogratificação compartilhada, para assegurar a união sexual.

A comida tinha chegado...estava esfriando, Hugo começou bocejar, a conversa estava indo longe. Nunca gostou de antropologia, tinha tendência a revelar uma crueldade masculina desmedida. Passou desconfiar que Jovita queria massacrá-lo, dar um fora qualificado, mas antes, rasgar o verbo.

Jovita estava exaltada na conversa, desapercebeu Hugo começar se esquivar quanticamente do assunto, mexendo no cabelo, movimentando demais os braços, sacudindo o saleiro e o paliteiro, começando inclusive criar uma percussão tocando os dois sobre a mesa. Não queria ir embora, os olhos castanhos claros de Jovita, naqueles dois glóbulos oculares em formato dos da tigresa o deixava estagnado, sem saída.

Deu corda a Jovita, deixou ela esgotar o que dizia até o final, enquanto isto, passou beliscar alguns pedaços da linguiça e do ovo(que estavam frios), e a salada de alface.

Jovita? Pediu mais um copo de laranjada. Continuou: Olha Hugo, não sei se o Antropólogo acertou na finalização do tema, disse que o problema que ainda arrastamos é o desejo por prazer, que tem sido maior que o por comida, mesmo que ainda nos mantemos unidos uns aos outros para formar família. Não é o seu caso, muito menos o meu, mesmo assim, acredito que inconscientemente estamos ligados ao grupo familiar, seja pela necessidade provinda do medo da fome e de não ter amor, e ainda da busca da satisfação da vaidade pessoal do estatus social no grupo.

Pergunto a você, e a paz? Porque está longe de ser uma realidade na Terra? Se sua solidão está lhe trazendo paz, ok! Mas vivemos a fragmentação interna, parecida com esta que voçe acabou de narrar, e dos grupos, inclusive familiar, além das irritações e guerras internas e externas, que nos fazem transar com um emocional peçonhento, que criamos e alimentamos diariamente.

Ouve-se um estrondo, era uma passeata que se aproximava, grupo de ativistas em prol da praia limpa. Era a vez de Hugo que não ouvia mais nada do que Jovita falava.

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 14/06/2018
Código do texto: T6364422
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