A criatura

Ele iniciou um novo projeto, estava felicíssimo e, durante um happy hour, resolveu contar para seus amigos, enquanto bebiam algumas cervejas num bar ali perto do serviço. A felicidade era tanta que o acesso à criatura foi inevitável. Quantos copos? Provavelmente uns sete, mas nada demais, pois aquilo já era de costume. Uma vez acessada, não havia limites: a quantidade de álcool no sangue só aumentava, ao passo que uma alegria falsa tomava conta da galera. Brigas estavam descartadas, entretanto coisas latentes iam e vinham naquela mesa. Passados de mau passo, situações constrangedoras e até confissões iam saindo daquelas bocas amargas; amarguradas pelo tempo. Tudo coberto com bastante riso, claro. Ele olhava para seus três amigos, enxergando nove e já passava das nove; mas ainda era cedo para voltarem. O vai-e-vem do garçom trazia irritação em um; noutro, aquilo trazia boas recordações. Pra ele, aquilo não tinha qualquer importância, pois seus pensamentos estavam longe... Talvez em outra época, quando tinha mais liberdade e verdadeira alegria de viver. Muito daquilo tudo era fachada; não apenas seu casamento, mas também seu sorriso que todos admiravam, mas que poucos conseguiam ignorar, diante de suas dores. Ali dentro, confusão e barulho; fora, apenas piadas e diversão. O vazio dos copos era o seu próprio, mas ele continuava a se encher de nada e aquilo alimentava a criatura. O tique-taque do relógio era uma música; uma canção repetitiva que marcava os excessos e antecipava consequências dele. E todo aquele afogamento de mágoas fazia com que a criatura se acalmasse. A noite estava boa e a lua parecia tranqüila, observando os amigos que se exaltavam de vez em quando; nada demais – já era costume. E aos poucos as piadas foram cessando e alguém pediu a conta, deixando a criatura um tanto desapontada. Dali a pouco estavam todos no carro dele e o clima ainda era bastante amistoso. Rua por rua, eles discutiam sonhos e metas, até que um deles soltou, em tom invejoso, um comentário que acabou com aquela atmosfera aprazível. Havia ali não apenas inveja, mas rancor e preconceito e tudo direcionado a ele. Então, iniciou-se uma discussão e as outras criaturas (não apenas a dele) se manifestaram. Vômitos verdes iam saindo e tudo veio à tona. O carro, não agüentando o “peso”, acabou deslizando na pista, ao ser direcionado em desvio de um caminhão enorme de Sucrilhos. Desceu rapidamente por uma ribanceira, caindo num rio. O silêncio daquela noite vinha com um grande ponto de interrogação no rosto de qualquer leitor ou telespectador. Depois de alguns instantes, descobriu-se que todas as criaturas haviam morrido; inclusive a dele. Só que ele era o único sobrevivente. E agora? Como ele viveria sem sua criatura para alimentar? Bem, depois daquilo, bem mais leve, pois sua perda de memória fez com que jamais conseguisse voltar a acessar aqueles sentimentos. Numa visão consciente de ônus e bônus, ele perdeu seus objetos pessoais, contato com entes queridos e até seu nome, passando a viver num abrigo desde então, mas, ele conheceu novas pessoas, abraçando assim a possibilidade de adquirir (mesmo sem querer) uma nova criatura. Bem, como de costume, o acesso foi tentado, mas até a presente data, negado. Vamos aguardar!

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 29/06/2018
Reeditado em 06/11/2019
Código do texto: T6377151
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