A TIRANIA DO SILÊNCIO



      O casarão do avô paterno era uma dessas construções antigas cuja fachada de tijolo sem emboço evocava-nos sensações de tristeza, abandono e medo. As portas e as janelas de madeira estavam sempre trancadas, com exceção da sala de visitas. Era dividido em cômodos enormes: a sala de visitas, a de jantar, a de oração, dois corredores medonhos, intermináveis, um cômodo onde ficava o forno a lenha, a cozinha, a despensa, o paiol, o alpendre, dez dormitórios grandes, além de uma calçada de dois metros de altura que lhe servia de moldura e o separava do frondoso tamarindeiro ─ beleza única daquela paisagem insípida. Afastado a uns dez metros do casarão, ficava o tear que produzia um ruído insuportável, onde a tia ficava isolada, a maior parte do tempo, tecendo nas redes e mantas sob encomenda a sua solidão de viúva.
     Tudo era soturno e sombrio naquela casa, a começar pelo oratório repleto de imagens que nos transmitiam aflição e angústia: Eram santos que nos ensinavam o tempo todo a ter medo de Deus! Uns eram chaguentos e tristes; outros exibiam as mãos espalmadas com marcas de tortura; outro amarrado a uma estaca com o peito transpassado por flechas e, com um olhar transbordante de ternura e dor, a Virgem Maria apontava com o indicador direito o próprio coração sangrando. Porém, a imagem mais deprimente era a do Cristo crucificado! Olhávamos para Ele e, a cada dia, tínhamos a impressão de que sua cabeça pendia ora para a direita, ora para a esquerda, a nos pedir compaixão e amparo!
     As paredes da sala de visita eram cobertas de fotos de pessoas já falecidas, há muito tempo e quadros religiosos que retratavam o purgatório, onde as almas súplices estendiam os braços através das labaredas inclementes. A um canto, repousava horizontalmente uma cruz negra, muito pesada, talhada em madeira pelo bisavô, na passagem do século XIX para o século XX. Havia algo de sinistro naquele objeto "sagrado" — o desejo de que alguém morresse para, enfim, poder erguer-se do chão e acompanhar vitoriosa e imponente o funeral macabro!
     De tanto ouvirem histórias de "almas penadas", as crianças morriam de medo e só andavam em bando, naquela escuridão à luz de lamparina. Na casa do avô, moravam todos os filhos com as respectivas famílias. Eram muitas crianças! Entretanto, não havia alegria, porque não nos era permitido sorrir e brincar. Embora estivéssemos juntos, vivíamos solitários, em nosso mundo particular, falando com amigos imaginários ou com o único ser que parecia nos ouvir ─ o cachorro Tarzan que nosso tio Paulinho, falecido marido da tia, trouxera da cidade. Era um cão branco e creme, sem raça definida, porém, muito bonito! Ele estava sempre conosco, fazendo-nos uma espécie de guarda silenciosa, porque o animal também deveria obedecer às leis daquela ditadura. Bastava um olhar do avô ou de qualquer adulto do sexo masculino para que ele murchasse as orelhas e escondesse o rabo entre as pernas, recolhendo-se imediatamente ao seu isolamento canino.
     A partir dos seis anos, a cada criança era designada uma tarefa: carregar água do poço para encher as vasilhas, varrer o terreiro, lavar a louça, lavar as roupas no rio, fiar o algodão para a tia tecer as redes, trabalhar na lavoura ou cuidar dos bebês que as mães, sem o menor desejo, despejavam no mundo a cada ano, como promessa de mão-de-obra gratuita.
     Aos domingos, a casa se enchia de visitas. Sobretudo, quando era dia de missa e o padre, que vinha de muito longe, apeava para almoçar e ali, ficava sendo tratado como uma divindade, durante todo o dia. A avó lhe servia sequilhos, pão-de-ló, água de coco, doces caseiros e todas as guloseimas que o religioso devorava com sofreguidão.
     À hora das refeições, as crianças eram expulsas da sala para que não ouvissem a conversa dos adultos. Comiam sentadas no chão da cozinha e da despensa, em pratos de barro, os piores pedaços da galinha: pés, pescoço e costela ou as vísceras do porco. Deviam manter-se em silêncio. Quase nos controlavam a respiração.
     Naquele domingo, era o dia da Festa de Nossa Senhora das Dores, Padroeira do lugar. O padre Odilon viera com todo o séquito — um senhor gordo que cuidava da agenda e da casa paroquial, o sacristão, e duas senhoras que, segundo diziam, disputavam o amor do pároco —. Uma se chamava Ártemis, muito bonita, mas antipática. Devia ter uns quarenta anos, estatura mediana, naturalmente loira, a pele muito alva, olhos azuis, bochechas rosadas, cintura fina e panturrilhas torneadas. O nome da outra era Sandra, mais jovem e menos bela; uma morena alta, magra, cabelos negros levemente presos, lábios carnudos, dentes perfeitos e belos olhos negros que viviam sorrindo. Vieram também o prefeito e o governador com as respectivas esposas. Afinal, almoçar no casarão era certeza de comida farta, muita bajulação e voto no próximo pleito!
     À hora do almoço, o avô convidou as visitas e os filhos para comporem a mesa e olhou de esguelha para a meninada que se levantou do chão, imediatamente.
     — Deixe as crianças, Seu Francisco! Elas alegram o ambiente! Comentou a senhora loira de olhos azuis.
     — Ah! D. Ártemis, a senhora não conhece o meu sistema! Menino aqui em casa sabe muito bem que o lugar dele é bem longe dos adultos. De mais a mais, essas pestes só fazem é zoada. — E ordenou autoritário: — Saiam já daqui! Saiam!!!
     Todos nós corremos apavorados sob o grito do velho, exceto meu primo Otávio, de seis anos, que estava sentado no chão, ao lado do homem gordo. Ele não pôde levantar-se, nem fora notada a sua presença, ali. Após o almoço, todos os adultos retornaram à sala de visitas para tomar o café, quando a tia gritou em desespero:
     — Taviiiiiiiinho!!! Minha Nossa Senhora, meu filho está desmaiado!
     A criança estivera durante todo o tempo com a mão esquerda debaixo do pé da cadeira em que o senhor gordo estava sentado e não emitira sequer um ruído, por medo de ser espancado. A mãozinha estava toda destruída e sangrando muito. Puseram-lhe compressa de vinagre nas narinas, deram-lhe tapinhas na face pálida, esfregaram-lhe álcool nos punhos.... Finalmente, ele recobrou os sentidos.
     — Vamos levar o menino à cidade para consultar um médico, Seu Francisco! E pode deixar a despesa por minha conta! — Exclamou o prefeito, tomado de comoção. — Caso contrário, ele poderá até perder a mão!
         — Pois que perca! Médico coisa nenhuma!          — Retorquiu o avô. — É bem feito para ele deixar de ser desobediente. Não tinha nada que ficar aqui, ouvindo nossa conversa! Agora, toda vez que ele olhar para a mão quebrada, vai lembrar que lugar de menino é no quintal, junto com as galinhas e os porcos e não no meio dos adultos!
        A mãe da criança, como sempre submissa e impotente, ajoelhou-se aos pés do sogro a implorar-lhe que levasse o filho ao médico, que aliviasse o sofrimento dele. Mas, o avô foi implacável e o pai o apoiou.
      As visitas despediram-se consternadas e todas as crianças foram chamadas à sala para que aquilo lhes servisse de exemplo. Dezenas de olhinhos assustados pareciam saltar das órbitas, tentando transmitir ao irmão e primo a dor silenciosa que traziam na alma.
       O pequeno Otávio, sentado no colo materno, olhava para a mãozinha esmagada e depois mergulhava o olhar nos olhos da mãe, cujo pranto contido ia deglutindo a tristeza, o arrependimento, o ódio e a culpa. A cabeça latejava e sentia um bolo doloroso na garganta afônica, enquanto as mãos trêmulas cuidavam do filho, fazendo-lhe o curativo de pó de café, envolto em uma atadura improvisada com um pedaço de camisa velha daquele marido que ela maldizia silente.
      Após uma semana, Tavinho ardia em febre, a mão adquirira uma cor azul violácea e os olhinhos lacrimejantes denunciavam a dor insuportável.      Entretanto, o menino tinha de abafar o gemido, porque as crianças do casarão eram adestradas pelo avô tirano e pelos pais forjados por ele a não reclamar, a não demonstrar fraqueza, a fingir que não doía a dor extrema, a viver sem vida. Com a avó e a mãe aprendiam a lição do silêncio, da renúncia e da anulação.
     Ah! Se ele pudesse gritar! — Pensava, sentindo dó de si mesmo. Talvez, aliviasse um pouco aquela dor latejante!!! Ah! Se ele pudesse, ao menos contar com o carinho do pai, poderia pedir-lhe colo e ensaiar algumas frases que pudessem persuadir o avô a não deixar que ele ficasse aleijado! Mas, não podia... Naquele momento, ele podia apenas deixar que as lágrimas lhe descessem pela face pálida e encharcassem o peito franzino, nada mais... Sabia que tinha de “engolir o choro” convulsivo! Por mais que doesse... Tinha de "engolir o choro, o gemido, a aflição..." Então, com o bracinho dobrado sobre o peito, isolou-se no quarto escuro e deixou que a tristeza assumisse de vez o comando de sua vida. Não brincava, não sorria nem se alimentava. Passava o dia inteiro com os olhos fixos na mãozinha deformada, como se tramasse algo em segredo. Permitia, no entanto, a companhia de Tarzan que também já não comia nem queria a companhia das outras crianças. Prostrara-se ali, aos pés do amigo, com o focinho úmido enfiado entre as patas e as orelhas caídas sobre os olhos cerrados.
Certa manhã, percebendo que a sombra da morte rondava o filho querido, a mãe voltou a insistir e teve a permissão do avô e do pai para levá-lo ao médico. No entanto, já era tarde demais... O menino sumira! O único vestígio que deixara era a atadura suja de sangue, jogada sobre a cabeceira da mesa e os chinelinhos gastos sob a cadeira de balanço do avô. Tarzan jazia sob a rede listrada em que o amigo passara a noite.
Os dias se passaram, mas Tavinho não voltou para casa.
     — Aquela peste deve ter sumido no mato — Diziam furiosos o avô e o pai. — Coitadinho! Deve ter ido procurar ajuda na cidade, pedindo carona por aí. — Lamentavam preocupadas a avó e a mãe. — O Tavinho virou anjo e foi pro céu — Murmuravam as crianças.
     Conforme o sentimento e a crença de cada um, o destino de Tavinho ia sendo traçado, dia após dia. Entretanto, ele jamais foi encontrado pela família. Talvez, tenha se perdido no mato. Talvez, seja mais um integrante da multidão anônima espalhada pelas ruas das grandes cidades. Ou quem sabe, faça parte de alguma legião dos anjos que atuam no Céu ou na Terra, protegendo e amparando os indefesos e injustiçados.... Quem sabe?

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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 19/07/2018
Reeditado em 22/08/2019
Código do texto: T6393992
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