Cordeiro pastando em campo aberto [conto]

Meu Deus absolutamente não liga para o que eu faço. Ele reservou meu lugar no céu dos justos, crédulos e fiéis, e Se esqueceu da minha existência para aguardar ansiosamente minha chegada. Independente do que eu faça, ou não, até o dia do nosso encontro, uma festa embalada por Jimi Hendrix e Janis Joplins vai estar à minha espera. Jah estará no comando da cafeteria e Jack Daniel servindo as bebidas batizadas pelo Dr. Hofmann. Será homérico. Não existirá dores, nem estômago, nem intestino para atormentar. Essa privada vai simbolizar o inferno. Ficar sentado aqui colocando as tripas para fora na forma de um líquido viscoso e fétido será a penitência dos cretinos que viajarem errado. Depois de pagar meus débitos fiz um café, me acomodei no sofá com um cigarro e o rádio tocando Jefferson Airplane para refletir sobre a vida e a morte. Alguma coisa começou a me incomodar ali naquela região onde se forma a pasta asquerosa que desce pela boca do capeta. Senti que precisava fazer alguma coisa e fui para o Bar do Jaime. Quando ele me viu passando pela porta deu um passo na direção da ripa de amansa maluco e a filha dele entrou para dentro da cozinha. “Não quero mais você aqui, bastardo.” “Mas quer a onça?” “Quero o cardume que você me deve, filho duma puta.” “Me dá alguma coisa pra tremedeira e me arruma um lago pra pescar.”

Encostei no canto do balcão com o conhaque, o cigarro e o jornal. Juntos esperamos o vento apontar o caminho à seguir. Já estávamos nesse compasso tempo o suficiente para entender que esperança é algo inerente ao ser humano, o melhor é aceitar, e fica mais fácil with a little help from my friends. As notícias me garantiam que a vida de trabalhador jamais seria a minha, os tragos me diziam para ter calma, e os goles serenidade. Entre o fim do mundo e a falência da instituição familiar um gordo desidratando com um charuto na mão chegou irradiando uma mistura de vinagre azedo com bouquet de escritório no centro. Ele secou a testa, pediu uma xícara de café e olhou para mim. “Lembro de você.” Não esbocei nenhuma reação torcendo para um toque mágico apagar qualquer lembrança sobre mim da memória dele, ou que simplesmente ele acatasse a minha mensagem de não me enche o saco. “Quer trabalho?” “Tenho cara de pastor?” “Não estou procurando um piadista.” “Se eu fosse pastor me davam até dízimo por elas.” Olhei para o Jaime como quem diz: “o peixe é ensaboado”, e ele franziu a testa no tom de “vou te matar na primeira oportunidade”. O candidato a provedor do aluguel desse mês ia se virando para sair quando na minha cabeça se formou a imagem dele atravessando a porta e o Jaime pulando o balcão com a ripa de amansar maluco pedindo sangue. Meu instinto de sobrevivência falou na direção contrária a da ripa. “Preciso de dinheiro enquanto durar essa fase terrena da vida.” “No galpão do Pereira, depois do expediente.” O velho sorrateiro do bar sorriu de leve imaginando minha morte.

Fiquei aproveitando o crédito da onça no bar até o sol baixar. Quando passei a enxergar vultos e uma neblina branca tomando conta da minha visão periférica senti que estava preparado para o trabalho. Cheguei no galpão do Pereira e a agitação toda se concentrava no ringue feito de quatro barris, com um chefe sentado em cada um agitando maços de dinheiro nas duas mãos, e o povo urrando ódio e cuspindo sangue em volta. Desfilando pancadaria dentro das cordas um bombadinho da zona sul e um estivador gigante. Por algum motivo masoquista o fetichista de academia apanhava como um João bobo do grandão que precisa pagar as contas, numa estratégia Royce Gracie que parecia fadada ao sono profundo por socos bem dados na cara. O Golias agarrou na perna do David achando que Deus ia derrubar o monstro para ele poder demonstrar toda sua técnica de imobilização, mas o destruidor de sonhos começou a chutar o sonhador contra o barril até que ele o largasse do seu pé para abraçar a lona, que ali se concretizava num chão duro e gelado.

O cidadão de bem que me chamou estava sentado no corner superior esquerdo, e depois de ajudar a tirar a carcaça do ringue anunciou que estavam abertas as inscrições para o próximo show da noite. Levantei a mão e assim que percebeu minha presença ele sorriu. “Venha para o palco da glória…..” Não consegui entender o que ele disse depois, estava tudo meio que girando e o alvoroço do público pedindo pela minha morte se sobressaia. Um branquelo quadrado como um robô saiu do meio da torcida, passou pelas cordas dando tapas na própria cara, depois no próprio peito, gritando que iria atender o clamor popular por justiça contra pessoas como eu. Minha visão pulsava e a imagem do Everest tremia na minha frente como televisão velha tentando sintonizar. O senso comum me mandou para o centro do ringue para escutar que ali não havia regras, mas que era mais honroso uma vitória sem dedo no olho ou puxar o cabelo.

Não tinha nada disso, e uma mão não sei vindo da onde acertou minha orelha violentamente me jogando para as cordas. Levantei completamente tonto e sinalizando, com o braço direito esticado e a palma da mão levantada, que precisava de um tempo. Tomei um safanão e fui conhecer o chão do outro lado do ringue. Enquanto me contorcia na busca de um motivo para viver a filha do Jaime me puxou para o canto e enfiou uma trouxinha feita de folha de coca com cinza de batata doce na minha boca. Na primeira mordida deixei de sentir qualquer tipo de dor, na sequência a visão centralizou e consegui desviar do pé voador que vinha a toda velocidade de encontro à minha cara. Levantei e comecei a gingar como um motor de Brasília prestes a explodir. Com a agilidade de um cocaínomano que assistiu a trilogia Bourne dezenas de vezes no Domingo Maior desandei a acertar a gigante da montanha nevada seguidamente na orelha e no rim. Era como se eu fosse o Neo descobrindo toda sua potencialidade contra o Smith em Matrix. Finalizei o gladiador com um gancho à la Mortal Kombat que me colocou no papel do Holyfield e ele no de Maguila. Parei babando sangue no giratório centro do ringue. A torcida não mudou de lado e continuava pedindo minha cabeça ensanguentada com os olhos esbugalhados e a língua de fora numa bandeja de prata. O cidadão de bem colocou o dinheiro do ganhador no meu bolso e sai do galpão pelos fundos escorado na filha do Jaime direto para cama dos campeões.