Com que roupa eu vou?

Por um bom tempo repeti religiosamente o hábito de ir até aquele estabelecimento. A loja era de um tamanho pequeno, com as araras e prateleiras dispostas de modo que as promoções e novidades ficassem estrategicamente posicionadas à luz das vitrines e o resto todo aos fundos cuidadosamente dividido em setores de vestuário. Lá dentro, repetia sempre os mesmos passos, como quem segue uma receita de bolo pela primeira vez.

Fui até o final do corredor abarrotado, peguei uma peça ao acaso, com o desdém de quem compra uma folha em branco, e levei até o caixa.

- Vai levar?

- Vou sim.

- Mas nem experimentou. – A moça me olhava, seu rosto magro e ossudo deixava transparecer a expressão curiosa.

- Mal não faz. Sempre escolheram por mim e o resultado é quase que o mesmo. - e fui embora com minha sacola.

O dia seguinte era sempre pior, porque era o dia de averiguar o conteúdo da sacola. Havia nela uma calça, em diferentes lavagens de jeans e uns 3 ou 4 tamanhos maiores que o meu. Vai servir dobrando-se as barras, pensei. Mas foi preciso descer apenas lances de escada o suficiente para que os olhares de reprovação materna me alcancassem.

- De novo tu com isso? Está demasiado largo em ti.

- Mal não faz.

- Faz sim. Dá três passos e está tudo à mostra com esta calça no meio das pernas.

- Puxo de volta.

- Bote um cinto, ou não sai.

Botei um cinto, porque mãe não é cá neste mundo espécie que se deve desafiar. E fui pra rua. Um dia inteiro de calças largas a me atazanar o juízo com a preocupação de saber onde estão. De ter de escolher segurá-las junto a mim ou ter uma tira de couro a me apertar o quadril para manter a peça onde a naturalidade do uso diz que ela deveria estar. De sofrer ao imaginar a vergonha que a calça egoísta poderia me proporcionar deixando tudo a mostra. Mas tudo bem, mal não faz.

Três semanas depois voltei à loja. Fui até o fundo, peguei uma peça, levei pro caixa.

- Não vais mesmo experimentar? Parece bem pequena.- A moça ainda insistia.

- Mal não faz. - e levei.

Dessa vez havia uma camisa florida em tons de amarelo, com botões de cima a baixo, ia apertar, com toda certeza. Vesti e desci as escadas, e nem o fuzilamento dos olhos da minha mãe foram duros o suficiente pra me fazer trocar o vestuário. Saí assim, e houveram horas no dia em que me perguntei se o sangue estava mesmo circulando por meus braços. Quando voltei, um botão tinha se arrancado, e me senti culpada por causar tal dano à blusa nova.

- Mãe, arranquei um botão na blusa.

- Mal não faz, esta está te arrancando a liberdade o dia todo.

-Põe de volta? – meu tom era de quase súplica.

-Põe ti, cada um que se resolve com o que quer vestir. – e não retruquei, ela estava certa.

Na semana seguinte voltei à loja, como de costume. A paciência, menor nesse dia, fez com que eu pegasse uma das peças da promoção; fui até o caixa.

- Vai levar?

- Vou sim.

-Por que é que sempre vem aqui fazer compras com este desdém? Não leva nada que lhe sirva, nem se importa em ao menos olhar pra que te agrade algo.

- Não faz mal fazer algumas escolhas sozinha, ainda que erradas. -respondi, intrigada com a petulância da moça.

Fui pra casa. No pacote dessa vez havia um vestido de tecido apropriado para o verão. Seu corte era tal que só era possível acreditar num erro de fabricação, porque um ser humano tão magrelo e estirado só poderia ser uma aberração. Me vestiu perfeitamente os ombros, então desci as escadas pra ouvir a voz de críticas.

- Está demasiado longo, não vais conseguir andar com isso.

- Mal não faz.

- Pois bem, vai se arrastar por aí com tecido que não precisa, só vai te atrasar. Mal não faz, cada um que se resolve com o que quer vestir.

E parti. Usei muitas vezes ainda o tal vestido. E depois voltei na loja. Entrei, olhei tudo por alto antes de explorar as araras, e depois o fiz. Mexi, revirei, retirei dos cabides, até experimentei algumas peças. Passei mais tempo na loja do que me lembrava de ter feito algum dia em vida. Então peguei o item que havia escolhido e fui até o caixa.

- É isto que quero. Embale que vou levar.

- Uma bolsa? A única vez em que entra aqui e vê o que há na loja vais sair com uma bolsa? – a indignação da atendente gritava.

- Pois foi a única que verdadeiramente escolhi, e sabes, aqui carrego o que quiser.

Peguei minha bolsa e fui embora. No dia seguinte, costumeiramente ao raiar do sol, me aprontei e fui descer as escadas. Dessa vez porém, nua, com a bolsa a tiracolo.

- Vais nua? - acho que mamãe não se abalava mais.

- Vou sim, mal não faz.

- Pois vão todos se espantar contigo o dia todo.

- Isso porque ainda não descobriram que basta vestir-se de si mesmo.

E saí.