O TESTAMENTO

A tia Julieta finara-se há precisamente uma semana e, de acordo com a lei, a leitura do seu testamento deveria ter lugar num cartório notarial, discriminando os bens dela deixados de acordo como sua última vontade. Para além de dois sobrinhos, que não lhe ligavam nenhuma, não tinha ascendentes nem descendentes directos.

Os dois sobrinhos, ambos irmãos, André, de trinta e oito anos, casado e com dois filhos pequenos, e Filipe, de vinte e nove, solteiro, aguardavam ansiosamente a leitura. Tinham esperança de ser os contemplados com a maioria dos bens da tia. Reconheciam que raramente a contatavam, apenas sabiam da degradação do seu estado de saúde pelo telefone, apesar de morarem a pouca distância da casa dela. Esta era uma mansão senhorial, imensa e onde a tia Julieta habitara durante muitos anos, primeiro com seu defunto marido, depois apenas acompanhada dos seus empregados: sua governanta Josefina, a criada Fernanda, o jardineiro Alípio e a cozinheira Márcia, nesta altura também presentes na sala do cartório.

André e Filipe sorriam, espalhando simpatia ao redor, convencidos da justiça da divisão e sendo eles os únicos parentes a considerar.

Também estavam presentes duas testemunhas, obrigatórias perante a lei. Eram vizinhos da tia Julieta, pessoas idóneas, com algum conhecimento dos factos.

Depois de constatar a presença dos potenciais interessados no testamento a ser lido, o notário deu início à sua função, passando a enunciar os pontos constantes no texto. Lidos os considerandos iniciais, tradicionais em qualquer documento deste género, passou ao mais importante, a divisão dos bens:

“ - À minha estimada governanta, Josefina Pontes, deixo um prédio para rendimento por aluguer, situado na rua…., em Cascais;

- À minha fiel criada Fernanda Dias, sempre tão cuidadosa e afectiva, deixo um prédio para rendimento por aluguer, situado na rua… , em Lisboa;

- Ao meu dedicado jardineiro Alípio Fonseca, um andar de quatro assoalhadas, situado na rua…, também em Lisboa;

- À minha querida cozinheira Márcia Rodrigues, gentil e tão prendada de mãos para a culinária, lego dois andares, esquerdo e direito, situados na rua…, no Estoril;

- Ao meu sobrinho André Pereira, que sempre foi tão pródigo de cuidados e preocupação comigo, lego o automóvel do meu defunto marido, um Audi de 1966. Não tem valor comercial, nem sequer anda, mas decerto que o vai apreciar como carro de coleção;

- Ao meu sobrinho Filipe Pereira, sempre tão interessado na minha saúde, lego uma bicicleta que meu marido usava nos seus passeios. Precisa de alguns consertos, mas o seu valor estimativo é enorme e decerto que ele o há-de apreciar condignamente. Lego-lhe ainda um televisor a preto e branco, a válvulas, também já não funciona mas o seu valor estimativo é enorme;

- O dinheiro constante nas contas bancárias discriminadas em anexo, que totalizam mais de trinta milhões de euros, e uma vez deduzidos todos os encargos legais, será distribuído em partes iguais pelas quatro primeiras pessoas aqui mencionadas.

Estou confiante que todas as minhas decisões são revestidas da mais elementar justiça.

Rezem por mim. “

O notário terminou a leitura e logo os sobrinhos da testadora se insurgiram contra o que consideraram uma injustiça – “serem totalmente preteridos pela criadagem… onde já se viu isso? “

O notário referiu que o testamento agora lido só poderia ser legalmente contestado se fosse provado que a testadora não estava da posse de todas as suas faculdades mentais, hipótese que as testemunhas presentes desconsideraram, conheciam a defunta e sempre evidenciou uma personalidade lúcida e determinada.

Por fim, cada um dos contemplados recebeu uma cópia, paga, do testamento, a fim de proceder à habilitação de herdeiros numa repartição de finanças.

Entre dentes, os sobrinhos dirigiram à tia um chorrilho de impropérios, em voz baixa, claro, depois entraram num táxi e abalaram com destino desconhecido.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 03/03/2019
Reeditado em 04/03/2019
Código do texto: T6588613
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