Peixes, livros e anzóis.

"Sonhos é do que você acorda".

Raymond Carver

Dirigia devagar observando as residências do novo condomínio. Dentro dele, no entanto, havia uma pressa apertada. Mais apertada do que o seu coturno e o seu uniforme de entregador. Assim, enquanto suava e limpava a testa com as costas da mão, dirigindo lentamente e a contragosto, encontrou a casa. Olhou com desdém para ela. Pegou o celular e enviou uma mensagem para o sócio-gerente:

-Da próxima vez, você entrega e eu monitoro.

A casa era grande, com um gramado na frente, e não tinha muros. Batia com o endereço e a descrição que lhe haviam dado. Sinalizou; aguardando a saída de um carro vermelho que rodava devagar. “Droga”, pensou antes de estacionar no meio fio, logo atrás de um carro de passeio. Balançando a cabeça pegou a encomenda no banco do carona, deu um toque na buzina e ficou esperando aparecer alguém. Foi surpreendido por uma voz:

-Hei! É aqui, pode descer!

Com a caixa debaixo do braço desceu do veículo, deu uma última tragada no cigarro e o jogou na sarjeta. Viu a silhueta do homem na janela entreaberta. Quando ia fechar o vidro escutou o homem gritar lá de dentro:

-Não é preciso fechar. O bairro é seguro.

Trocou a encomenda de braço e aguardou o outro sair. Enquanto enchia os pulmões do ar campestre do bairro novo, observou os coqueiros-mirins que ladeavam o caminho até a casa. Balançavam afoitos com o vento da manhã. Do outro lado da rua, as muitas casas do condomínio pareciam uma fila de cogumelos cor de gelo brilhando sob o sol. Estava se voltando para frente quando o homem chegou. Trazia um largo sorriso, trajava bermuda e camisa floridas. Estendeu-lhe a mão.

-Zé Roberto! É você? Não acredito...

De perto o reconheceu também, mas não se surpreendeu. Encontrava tanta gente antiga em sua nova ocupação. Não tinha mais surpresas: apenas reconhecia e tinha pressa. O dono da casa era um antigo colega de serviço. Aparentava ser mais jovem nesse momento do que há dez anos, se bem que nunca estivera tão próximo dele como estava agora. Pôde sentir o aperto firme da mão dele que era, ao mesmo tempo, amigável e inédito.

-Entre, por favor! Estou terminando um serviço...

O outro lhe indicou o caminho e adiantou-se para abrir-lhe a porta. Com uma mão chamava-o e com a outra indicava uma poltrona esverdeada ao lado de uma janela e saiu apressado para cuidar de algo na cozinha. Foi então que lhe chegou ao olfato o cheiro característico e saboroso de peixe frito. Deixou a encomenda ao lado e sentiu-se salivar. Levantava-se quando o homem voltou.

-Quer tomar alguma coisa? Uísque, água?

Disse que não, que tinha pressa e que ganhava por comissão. Quanto mais vendesse, mais ganharia. Afinal, o seu serviço de entrega ainda consistia em apresentar o produto e manipulá-lo à vista do cliente para que, se fosse o caso, efetuasse a troca imediata. Por fim, ele perguntou, já sabendo a resposta, se o cliente não era acaso o professor Domingos?

-Isso mesmo! Pensei que houvesse se esquecido de mim!

Deu um sorriso tímido e forçado que poderia significar algo do tipo: ”Como esquecer o primeiro patrão?” Havia lecionado na sua escola particular assim que concluiu a faculdade, entretanto cansou da sala de aula – não só pelo irrisório salário – principalmente porque descobriu que havia se tornado um prisioneiro das quatro paredes. Por isso, teve um anseio infantil de liberdade e se tornou um vendedor. Mas, era um vendedor diferente, assim pensava e pensando devaneava. Vagarosamente, foi retirado de seus devaneios.

-O sábado só começou, amigo! Prove esse peixinho...

Domingos entregou-lhe um prato de papelão com alguns cubos cheirosos de peixe frito, ladeados de rodelas de limão. O pratinho estava morno e dava para ver o sal sobre os cubos dourados. A mornidade subia do prato ao pulso e deste ao relógio para o qual ele olhava desconsoladamente. O dono da casa segurava outro prato enquanto o chamou para que pudesse ver algo. Ele foi lépido pensando que fosse ver um peixe vivo ou algo parecido. O professor sinalizou com a mão direita e disse:

-Você não bebe, mas lê em serviço?

Ele não respondeu, mas o acompanhou. Atravessaram a sala e um pequeno corredor. Pararam diante de uma parede que dava de frente para a cozinha. Domingos parou e, num gesto de cortesia, mostrou-lhe o balcão:

-Minha adegateca ou bibliotrago, como queira!

Zé Roberto sorriu diante dessa demonstração de criatividade. Começou sorrindo timidamente, em seguida soltou uma gargalhada formidável, que o fez tremer todo de prazer e recordação. “Então, era isso”, pensou. O ex-diretor o trouxera até ali com a desculpa de comprar iscas, anzóis e molinete só para lhe mostrar as paixões dele? Riu mais um pouco como quem ri de um de ex-amor. Logo, começou a perscrutar novamente o relógio. Domingos o provocava:

-Vamos! Olhe, olhe!

Com cautela passou os dedos sobre as lombadas. Sentiu na ponta dos dedos uma lembrança tátil, mas olhando para eles viu-os úmidos de gordura. Entregou o prato para Domingos e quis se desculpar. O outro se aproximou dele, incentivando-o a pegar um livro. Encorajava:

-Estão aqui, próximo à cozinha, para que tenham gosto e cheiro!

Então, um Jorge Amado ficou preso entre o indicador e o polegar. Em seguida, corriam livres sob seus dedos os pés ligeiros de Pedro Bala e o sorriso erótico de Tieta. Folheou e folheou e sentiu, além do cheiro característico de livro usado, um odor de cravo e canela que emanava do livro. Encostou-o a um garrafão de vinho quando seus olhos viram a beleza da capa de um Cem Anos de Solidão. Seu olhar ficou preso nas belas e rústicas gravuras da capa do clássico colombiano. Mal ouviu Domingos sussurrar:

-E eu com sessenta anos e nenhuma linha escrita...

Admirado de si mesmo virou-se para ele ainda com o livro numa das mãos e apertou-lhe o ombro. Balançou a cabeça em sinal de compreensão e pôs o Garcia Marquez ao lado de Cervantes. Continuou olhando e viu o Padre Vieira entre dois litros de cachaça de Minas; Clarice e Adélia Prado estavam recostadas em duas garrafas de vodka. No fim do balcão Vinicius de Moraes sorria timidamente ao lado de um conhaque nacional. Havia outros e outras - todos poetas – propositalmente acompanhado de algum composto alcoólico. Ele passeava as vistas e se embriagava de recordações. Domingos despertou-o:

-Nosso peixe esfriou. Vou ligar o micro-ondas.

Zé Roberto sorriu, dando a entender que não precisava. Apontou o relógio e disse que tinha de ir mesmo, pois estava atrasado. Antes, porém, tinha de lhe mostrar o produto. O pagamento já havido sido feito online. O anfitrião o conduziu de volta à sala. Depôs os pratinhos sobre a mesa de centro e perguntou:

-E você o que anda lendo?

Entregando a caixa de papelão para que o outro a abrisse, Zé Roberto, foi inventariando suas leituras obrigatórias: manuais de instrução de produtos, revistas, os classificados, textos e mensagens das redes sociais e um ou outro best seller de banca de jornal. Domingos ouvia concordando e depois fez um sinal de positivo para o que viu do produto. Zé Roberto esticou o braço para cumprimentá-lo. Logo que se apertaram as mãos ouviram um leve barulho de carro estacionando. Domingos levantou as sobrancelhas.

-Você conhece a minha mulher?

Já transpondo a porta e seguindo pela estrada de pedras os dois desciam amistosamente. Antes de alcançarem a calçada, a mulher veio ao encontro deles. Era muito jovem e aparentava estar feliz. Usava óculos escuros e um vestido longo e leve. Domingos a abraçou apresentando-a:

-Gabriela, Zé Roberto! Zé Roberto, Gabriela!

A mulher balançou a cabeça e o cumprimentou com uma mão forte e suada. Em seguida adentrou a casa. Dava para ver que ela permaneceu parada atrás da cortina esvoaçante da sala. Na calçada, do outro lado da rua, o carro vermelho e brilhoso refletia o jardim de um lado e outro da rua e uma velha caminhonete que saía e se distanciava. Logo, em frente da residência, um casal abraçado recebia nos cabelos a carícia impetuosa do vento outonal. O homem olhava para longe, para onde o vento ia. Tocando o queixo da mulher disse pensativo:

-Acho que temos sorte, querida!

Ele a abraçou pela cintura. Atravessaram a rua devagar. Ela abriu o porta-malas. Ele foi retirando lá de dentro sacolas e caixas e empilhando na calçada. Depois retirou, com a ajuda dela, uma caixa térmica de tamanho médio e um pouco pesada. Ela olhava para ele se esforçando com todas aquelas sacolas e concordou que realmente eram bastante sortudos.

make
Enviado por make em 23/03/2019
Reeditado em 09/12/2019
Código do texto: T6605655
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