ESTRANHOS

À noite tudo lhe ficava mais claro. A demora, o desprezo. Chegava satisfeito. A comida, no fogão adormecia. As palavras, feito quebra-cabeças. A dor, feito môfo, tomava-lhe o peito. Sabia-o indiferente, sabia-se morta, e viva. Por quê? Fizera-lhe algo? Amava-o como uma rocha! Sentia-o como o vento. Findara o amor? Por que então não falara antes? ... Outra? ...Outras?.........................................................

— Bom dia, amor?

— Bom dia querida!

— Seu café está na mesa.

— Muito bom, muito bom, obrigado.

— Atrasado?

— Ainda não.

— Dormiu bem?

— Hum, hum.

As palavras escorriam pela boca. Não havia conjunções. Os períodos, simples. Despediu-se como a morte, fria e silenciosamente. Procurou-lhe o aceno. A mão no bolso guardava segredos. Foi-lhe leal incontinenti. Seu amor gravitacional nunca sucumbira a outro corpo. Era dele o seu ser, e só dele. Tentara rememorar fatos marcantes de negatividade extrema: NADA. Eram apaixonados, loucamente. Dera-se por inteiro a um homem inteiramente dela. Agora sabia-o partes. O que acontecera? Fora relapsa? Quando? Onde? Como? Por que não lhe dissera! Não se lembrava de atos falhos de sua parte. Falhara ele no seu último aniversário. Falhara porque nunca falhara, até então. Lembrou-se das flores dos jantares-surpresas, do anel, do café da manhã do penúltimo aniversário...

Tudo bem, era um homem bom, apenas apagara-se-lhe a chama da paixão. Sorriu. Riu, riu muito. Este último pensamento soou muito romântico. Riu novamente. Seu coração chorava. 14 anos. Fora feliz. Foram felizes? Não perguntara a ele. Pouco lhe perguntava. Ele lhe dizia tudo. Sobre as coisas sabia. Por que o suco da laranja subiu tanto? "Condições climáticas", respondia. O Brasil importar café é um absurdo! "Balança comercial", comentava. Variação do dólar, "Política cambial". Eu te amo, "Eu também ". Agora perguntava-se se era ela ou ele mesmo a referência. Sentia-se só e sem referência.

No quarto, após o banho, olhou-se no espelho. O tempo a machucara impiedosamente. Tinha a nítida impressão que envelhecera. Apenas a impressão. Como Monet, seus movimentos buscavam a luz, mostrando assim, a sinuosidade do seu corpo. Mas a ilusão no espelho ficava. De volta à flácida realidade era inadmissível que um homem só procurasse numa mulher o físico, o belo, o sexo. Não era carne e osso só, era também coração e cérebro, se não se cuidara, cuidara dele, a pessoa mais importante na sua vida, a razão da sua inconcebível displicência, mas o que faz uma mulher esquecer-se de si mesma? Relegar-se ao mero papel de . . . MULHER ?

Sentiu-se acabada. Machucada. Dolorida... Sem forças nas pernas... Zonza... Caiu. Deu-se conta do que estava acontecendo. As pernas não obedeciam. Os braços, inertes. O quarto mesclava cores num rodopio mortífero. Sua cabeça soltou-se a vagar pensamentos. Os olhos, cerrando à vida, vislumbravam ainda a dúvida: por quê?... por quê?...