Casamento

A Igreja estava repleta de convidados, todos impecavelmente vestidos. A nave principal decorada de modo suntuoso e ao mesmo tempo delicado, com flores brancas em profusão, exalava uma suave fragrância na qual se percebia uma rica mistura de hortelã, alecrim, com fundo olfativo de lavanda. O tapete vermelho sangue parecia mostrar a direção de um longo caminho que se apresentava reto e plano, mas todos sabem, ou ao menos deveriam saber, que este trajeto é inúmeras vezes carregado de surpresas e sobressaltos. Frequentemente apresenta curvas onde a sinuosidade causa calafrios; montanhas cuja inclinação e altimetria desencorajam a muitos, pois são julgadas intransponíveis, e também descidas tão acentuadas que fatalmente tiram o fôlego de qualquer um que se arrisque a descer. Cinco minutos de atraso! Cadê a noiva? Os músicos contratados, vestidos de preto, entoavam canções cuja letra e melodia causavam variadas emoções nas pessoas presentes, elegantemente trajadas, a maioria disciplinadamente sentada, acomodada nas longas fileiras dos bancos de madeira. Dez minutos de atraso! Cadê a noiva? No altar, em frente à mesa da cerimônia, o Padre, de costas para o público, contemplava o Cristo crucificado. Este era também um momento de crucificação, pensava ele. Sim, crucificação do eu indivíduo (noiva e noivo) para nascer um eu a dois. A necessária, difícil e quase impossível crucificação da vontade, do ego. Experiente aconselhador de casais em crise matrimonial, ele parecia fazer a reflexão sobre o sacrifício que estava prestes a acontecer e que, sabia tão bem, muitos entram para esta experiência sem se deixar pregar na cruz. O sacerdote habitualmente costumava finalizar sua fala, em cada celebração de núpcias por ele realizada, dizendo que sem esse ato de verdadeira entrega, sem que homem e mulher, ao se unirem, permitam-se ser pregados na cruz, o casamento é, de fato, somente uma cerimônia e uma convenção social. Quinze minutos de atraso! Cadê a noiva? O noivo em pé, diante do altar, braços abaixados com as mãos sobrepostas em um tenso abraço de dedos entrecruzados, o corpo rígido, rosto sério e um olhar fixo para a grande porta principal de entrada, suava frio. Vinte minutos de atraso! Cadê a noiva? Algumas crianças, inquietas, remexiam-se nos bancos e escapavam de seu pais, os quais começavam uma caçada para resgatá-las e tentar colocá-las novamente quietas a aguardar o início da cerimônia. A empreitada se tornara infrutífera, visto que os pequenos arteiros eram bem mais preparados e ágeis para correr entre os bancos e corredores da igreja e davam um verdadeiro baile em seus progenitores, escapando de todas as tentativas de laço. Vinte e cinco minutos de atraso! Cadê a noiva? O padre desperta do seu devaneio reflexivo, gira o corpo e direciona um olhar inquisidor para o noivo. O noivo claramente ansioso e constrangido, disfarça, olha para cima, para baixo, para os lados e não encara o"santo" homem. Os padrinhos estão todos alinhados, casal por casal nas laterais do altar. As madrinhas vestidas de tal modo a parecer que estão em um luxuoso desfile de modas para o qual haverá um concurso a fim de eleger o vestido mais suntuoso e também o mais bizarro. Olham umas para as outras com um olhar fuzilante, como que querendo incinerar instantaneamente a companheira de festa, demonstrando no olhar uma inveja mórbida relacionada ao que é diferente e aparentemente julgado bem mais bonito do que cada uma tem, pode ter, ou pode mostrar, segundo os padrões sociais. Trinta e minutos de atraso! Cadê a noiva? Os músicos continuam a entoar belas canções acompanhados pelos instrumentos e a voz rouca e marcante de uma mulher comprova que os noivos souberam escolher os profissionais do canto. Trinta e cinco minutos de atraso. Cadê a noiva? O noivo, nervoso, esquece que está sob os holofotes e olhares de toda a igreja e tira uma caca do nariz. Uma mãe insistente consegue alcançar seu filho serelepe e o trás de volta ao banco esperneando, carregado pelo meio da cintura tal qual um porquinho em crise epilética, aos gritos e protestos, os quais mesclados com a música entoada pelos cantores, tornam a cena digna de uma peça de Shakespeare. Quarenta minutos de atraso! Cadê a noiva? Alguns convidados adentram o templo alvoroçadamente, acreditando estarem muito atrasados e que por isso já perderam boa parte da celebração. Ouve-se um homem berrar com sua mulher, alegando que ela demora demais pra se arrumar e por isso perderam a hora. A mulher irritada, adianta-se rapidamente e deixa o marido falando sozinho no corredor da igreja, em uma cena patética. Quarenta e cinco minutos de atraso! Cadê a noiva? A mãe da noiva, ao lado do pai do noivo, olha para um lado e para o outro aparentando nervosismo, mas mantém a elegância de mãe da noiva. O padre vai até ela e cochicha algo em seu ouvido, ao que ela sai discretamente, dirigindo-se até uma pequena sala na lateral do altar da igreja. Cinquenta minutos de atraso! Cadê a noiva? A mãe da noiva telefona para o pai da noiva, mas simplesmente só dá caixa de mensagem. Tenta por cansativas sete vezes, obtendo o mesmo resultado. Em seguida, começa a ligar para noiva. Contudo, curiosamente, recebe como resposta uma mensagem de que o número de telefone não existe. Cinquenta e cinco minutos de atraso! Cadê a noiva? A mãe da noiva checa os números de celular, certificando-se de que estão corretos, tenta mais algumas vezes, recebendo a mesma mensagem como resposta. O noivo entra na sala, acompanhado de sua mãe e são informados que nem o pai da noiva, nem a noiva estão sendo encontrados via contato telefônico. O noivo também liga para a noiva vária vezes sem, no entanto, conseguir respostas. Os três se olham intrigados e preocupados, sem saber o que fazer ou pensar. Os convidados estão incomodados, mas permanecem sentados em seus lugares, com exceção dos que têm filhos pequenos porque, a essa altura, já correram o correspondente à meia maratona tentando alcançar os enérgicos seres de luz e graça, a fim de fazê-los aquietar-se por um segundo que seja. Uma hora de atraso! Cadê a noiva? O burburinho e os cochichos se intensificam e são inevitáveis. Um padrinho olha o celular, digita algo e sai a passos rápidos, encaminhando-se até a sala onde estão mãe da noiva, noivo e mãe do noivo. Conversa com o noivo e sai pela porta lateral, dirigindo-se a até um carro, no estacionamento da igreja. Uma hora e dez de atraso! Cadê a noiva? A noiva se salvou!

JANET VITAL
Enviado por JANET VITAL em 29/07/2019
Reeditado em 07/02/2020
Código do texto: T6707479
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