Transcorria o ano de mil novecentos e setenta e três. O Inverno estava pela metade, e a segunda quinzena do mês de janeiro exibia um Sol de torrar mamona na sombra. O calor era sufocante e a umidade relativa do ar, prenunciando as tempestades do período de chuvas na Amazônia, que desde o mês de novembro do ano anterior, prometia... Rondava os oitenta por cento. A impressão que o vivente tinha era que dava para cortar o ar com a unha, tão densa era umidade.

No Porto do Cai N’água, uma catraia[1] lotada de ribeirinhos, ao custo de muita força do catraieiro, ancorou balando perigosamente em meio aos banzeiros produzidos pelos ventos que rasgavam a quietude do Rio Mamoré. A peculiar embarcação, depois de devidamente apoitada[2] e amarrada; os passageiros, ainda hesitantes, pularam para o barranco; cada um, carregando as suas tralhas, praguejando e escorregando no barro arenoso e úmido, devido as primeiras gotas do aguaceiro que iria inundar Guajará Mirim, cidade do então Território Federal de Rondônia, fronteiriça com a Bolívia.

Dentre os passageiros, destacava-se um jovem caboclo de físico esguio, ombros largos, braços rijos e olhar penetrante.

Junto com os outros passageiros, subiu os degraus escorregadios escavados no barranco, carregando um saco de cernambi[3] nas costas. Os pés descalços, de certo modo, o ajudavam na subida. Os dedos dos pés, como garras, fincavam no barro mole dando tração às pernas esguias e ágeis. No alto do barranco, depois de ajudar vários passageiros, o jovem recebeu timidamente os agradecimentos e, debaixo da chuva que finalmente caía, caminhou apressado para debaixo da meia água que servia de varanda de uma quitanda, e olhando sorrindo para o quitandeiro, pediu uma dose de mata-bicho.

Depois da segunda dose de cachaça, o jovem espadanou a água do cabelo e perguntou para o proprietário do precário bar:

-Qui má lhe pregunte, o sinhô sabe mi dizê, seu moço, pr’onde fica o quarté de sordado?

-Ixe! E tu qué sabê pruquê, macho? – retrucou o quitandeiro, nem um pouco receptivo para o sorriso do beradeiro[4].

-Num vê o sinhô, qu’eu vim do seringá “Treis Bandêra”, lá do arto do Guaporé, das cabecêra do Rio... Pra vim ficá um tempo nesse lugá... Acho qui’um ano, num sabe? – respondeu o rapaz, já um pouco mais falante depois de emborcar a segunda dose de pinga e fazer sinal para mais uma dose, só para esquentar o corpo por debaixo da roupa molhada.

-Huuuuum! Intonce, tu’é cunscrito, é? – indagou o quitandeiro.

-Cúns... o quê, macho? Óia o respeito, home! – irritou-se o rapaz, descansando a mão instintivamente sobre o cabo da faca peixeira, enfiada no cós da calça, por debaixo das fraldas da camisa.

-Ói, Dico de Patos... O frangote ficou arreliado cum’tú, num sabe? – comentou jocosamente, um dos frequentadores da quitanda, com um copo de aguardente na mão.

-Se apoquente não, macho! – apaziguou um outro frequentador da quitanda; um homem de meia idade, com um corte de cabelo lembrando o estilo militar.

Depois de acender um cigarro, o homem do cabelo estilo militar, explicou para o rapaz o que o quitandeiro queria dizer com a palavra “cunscrito”.

-Escute, home! O que o Dico de Patos quis dizer com “cunscrito”, na verdade, ele quis falar “conscrito”, que significa inscrito, alistado no Exército Brasileiro. Atinou para o caso, macho?

-Ói, moço! De verdade verdadêra, eu num sei o qui’é isso não, num sabe? Isso de incristo, listado, e coisa e tal. O qui’ sêi é’qui me mandáro ir prêsse lugá... Dos sordado, num sabe? E disséro qui si’eu tivé são... Assim, sem duênça ninhuma, eu vô ficá pur’lá quáji um ano... É isso qu’eu sei, num sabe?

O homem com corte em estilo militar, que na verdade era um Cabo reformado do exército, compreendeu que aquele jovem ribeirinho estava mais perdido na cidade que cachorro caído de mudança, e assim sendo, resolveu ajudá-lo a encontrar o caminho do Quartel Militar, a Terceira Companhia de Fronteira.

-Meu jovem, que mal lhe pergunte, o jovem veio de onde? Do Alto Guaporé? De seringal? Ou de sítio?

-Ói, seu moço, eu vim do Seringá Três Sentinela, lá bem pra riba de Costa Marque, num sabe? Vivo lá desdi curumim[5], num sabe? É a permêra veiz qui’tô numa cidade grande qui’ném Guajará Mirim...

-E como é que você se alistou? Fez a inscrição para servir ao Exército Brasileiro? – indagou o Cabo Reformado.

-Foi pai... Pai qui levô eu no Forte Príncipe... Ano qui passô! Botô eu na frente dum home fardado, chêi d’umas tirinha nos ombro... Intregô uns papér pra êle, e pronto... Adispôs, pai me dixe qui nesse ano eu tinha qui pegar um barco e vim pra’qui... No quarté de Guajará, e intregá esses papér aqui, ói!

O militar reformado pegou os papeis, examinou-os com atenção, sorriu e os devolveu para o jovem ribeirinho.

-Realmente, meu jovem! Seu pai o inscreveu para servir ao Exército Brasileiro... Você é conscrito, e de acordo com esses papeis, você deve se apresentar ao Quartel amanhã, bem cedo... Lá pelas oito horas da manhã.

-Agora lascô! Eu nem num sei onde qui fica esse tar de Quartér, num sabe?

-Não se preocupe, meu jovem! Vamos tomar mais umas talagadas desse mata-bicho e depois eu lhe ensino o caminho para chegar até ao Quartel. Por enquanto, vamos tomar umas doses, e depois eu vou indicar uma pensão para você passar a noite. Você trouxe dinheiro, não trouxe?

-O jovem ribeirinho assentiu que sim.

- o –

Às sete horas da manhã, o jovem ribeirinho, banho tomado, rosto barbeado e todo alinhado, caminhava, algo apressado pela Avenida Quinze de Novembro, quando chegou na esquina da Prefeitura, dobrou à esquerda, e, seguindo a indicação do Cabo Reformado, alcançou a Avenida Leopoldo de Matos, dobrou à direita, e seguiu em frente até alcançar o prédio do Contingente Especial de Fronteira, ou simplesmente, Batalhão de Fronteira, como os munícipes guajará-mirenses denominavam a Sede do Batalhão.

Na área em frente ao Portão das Armas, dezenas de jovens conscritos, com os olhos esbugalhados, tagarelavam em pequenos grupos,  na expectativa do que os aguardavam dentro dos muros pintados de branco e verde oliva do aquartelamento. Alguns jovens, taciturnos, olhavam admirados as sentinelas de armas na mão, uniformes alinhados, coturnos e fivelas lustrados que rebrilhavam ao sol da manhã. Os guardas do portão, sisudos, os encaravam com olhares penetrantes e superiores; típicos de veteranos frente aos novatos.

Depois de um tempo, um Sargento com o queixo extremamente escanhoado e o cabelo duro de brilhantina, de cara fechada, gritou para fazer-se ouvir em meio ao burburinho que reinava nos grupos de jovens:

-COOOOONSSSCRITOS! EEEEEM FORMA!

Foi uma algazarra de baratas tontas e estáticas. Uns ficaram parados, rígidos, sem saber o que fazer, sem entenderem nada do que estava acontecendo. Outros, trombavam uns nos outros, tentando irem para lugar algum, sem saberem onde ficar. Alguns outros ainda, simplesmente sentaram à sombra da copa de um pé-de-manga, esperando que a confusão armada com os gritos do Sargento, se acalmasse. Entre esses, o jovem ribeirinho, que estupefato com o que estava vendo, murmurou entre dentes: “Esse povo da cidade, é tudo abilolado do juízo... Ééégua, macho!

Um outro ribeirinho que estava sentado sobre uma pedra, olhou para ele e perguntou: “Tu falô o que aí, macho?” – Sem nem olhar para o companheiro ao lado, ele respondeu: “Falei nada não, macho! Vixe! Pode nem falá sozím... Ééégua!”

Olhando para a balburdia, e sem paciência, o Sargento gritou dando instruções:

-BANDO DE CÚ-DE-VACA! Em “FORMA”, quer dizer: “Grupos de (aos gritos) TRÊS FILEIRAS – novamente aos gritos: Cada “FILEIRA”, com “DEZ ELEMENTOS”! – Para enfatizar suas orientações, o Sargento mostrando três dedos de cada mão, fazia gestos com os braços indicando onde queria que os grupos se formassem.

Foi pior! Aí, foi que a confusão aumentou... Os jovens, em primeiro lugar, não sabiam o significado de “conscrito”; em segundo, a maioria não sabia o que era “fileira com dez elementos”, e por último, os que conseguiram entender as orientações, ao procurarem formar as fileiras, por puro instinto de manada, os demais os seguiam... Porém, em vez ficar um atrás do outro, ficaram amontoados, como se fossem um monte de lagartas. Ninguém se entendia com ninguém.

Os jovens que estavam sentados sob a copa da mangueira, depois do espanto inicial, olhando o vai-e-vem dos demais conscritos trombando uns nos outros sem saberem para onde ir, desataram em risadas. De início, contidas, depois em desabridas gargalhadas.

O Sargento, exasperado com a balburdia formada em frente ao Portão das Armas, e temendo a repreensão de algum Oficial Superior que por ali passasse, pegou pelo braço um, dois, três das “baratas tontas” a sua frente, os posicionou lado a lado, à direita um do outro, mandou o primeiro e o segundo esticarem os braços direitos e colocarem no ombro direito, após o que, chamou os demais e mandou-os posicionarem-se atrás dos três primeiros, de forma que cada fileira ficasse com dez elementos. Depois do grupo formado, o Sargento mandou-os levantar o braço direito e colocar a mão no ombro do conscrito à sua frente.

Num gesto de extrema irritação, o Sargento gritou com os três “elementos” da frente:

-E VOCÊS AÍ, SEUS CÚ-DE-VACA? LEVANTARAM OS BRAÇOS PRA QUÊ, SE NÃO TEM NINGUÉM À FRENTE DE VOCÊS...??? – e gritando mais irritado ainda: BAIXEM OS BRAÇOS, IMBECIS!!!

Após formar o primeiro grupo, o Sargento mandou os demais conscritos alinharen-se em grupos iguais ao que ele havia feito. Pouco depois, havia quatro grupos amontoados em três fileiras cada um, à exceção dos jovens que ficaram sentados sob a copa da mangueira observando toda a movimentação.

Percebendo os grupos “dois”, “três” e “quatro”, sem guardarem a distância de um braço entre eles, o Sargento novamente os instruiu, mantendo o mesmo padrão de “gentileza”:

-ATEEENÇÃO, CHUCROS...!!! Todos olhando para mim... AAAAGÓRA!!!
Depois de prender a atenção dos grupos, ainda amontoados, o Sargento apontando o grupo que estava à sua frente, instruiu:

-Vocês aí... Vocês mesmo, ora! Estou apontando para vocês pra quê??? De agora em diante, serão conhecidos como Pelotão Um; os seguintes como Dois, Três e Quatro... ENTEEEENDÍDO??

Após a pergunta, uns e outros responderam timidamente, num murmúrio quase inaudível: “Entendido!

-NÃO OUVI...!!! – respondeu o Sargento aos gritos. E complementou: - A resposta correta é: “ENTENDIDO, SENHOR!”, bem alto. E perguntou novamente:

-ENTEEENDÍDO???

Desta vez, aumentou o número de respostas em tom um pouco mais alto; porém, como se fosse uma revoada de pombos. Uns responderam mais adiantados, outros mais atrasados... Uma verdadeira cacofonia de vozes desencontradas:

-Entendido, senhor!

-NÃO OUVI!!! – e irritado novamente ao extremo, o Sargento mais uma vez orientou os conscritos:

-ATEEENÇÃO! Quero ouvir “Entendido, Senhor!” numa só voz, de uma só vez e bem alto...  ENTEEENDÍDO???

Depois da quarta ou quinta tentativa, e quase rouco de tanto gritar, o Sargento conseguiu que os conscritos respondessem em uníssono a resposta desejada. Só então, o Sargento, suando em bicas, e depois de alguma dificuldade em razão de alguns conscritos não saberem distinguir o que era “direita” ou “esquerda”, conseguiu que todos guardassem a distância de um braço esticado à frente e à esquerda um do outro, dentro de cada grupo.

Quando o Sargento estava orientando os grupos para seguirem em formação para o interior do Quartel, foi avisado por um Cabo que estava tirando plantão no Portão das Armas:

-Permissão para falar, Sargento!

-Permissão concedida, Cabo!

-Sargento, e aquele grupo ali, sentado na raiz daquela mangueira? São conscritos, ou são só curiosos, Sargento? – com o queixo, o Cabo apontou o grupo de quatro ou cinco jovens que até aquele momento, sem participar das atividades, somente observava e ria dos encontros e desencontros dos comandados do Sargento.

Olhando para o grupo de jovens sob a copa da mangueira, que conversa e ria entre si, o Sargento os inquiriu com voz enérgica, com um misto de irritação e curiosidade:

-E você aí, estão fazendo o quê, aqui? Estão rindo de quê? Estão pensando que isto aqui é um circo, é?

-Não sinhô! Longe de nóis pensá u’a bestêra dessa... Nóis só ‘tava isperano as órde aí no povo... O sinhô é o capataz, num é naum? – o jovem ribeirinho respondeu pelo grupo.

Respirando fundo e procurando paciência nos recantos mais profundos do seu ser, e com voz pausada para esconder a fúria que o devorava por dentro, entredentes o Sargento respondeu com várias perguntas:

 -Vocês são conscritos? E se são, por que não se juntaram aos outros para irem assimilando as normas do Exército Brasileiro? Vocês sabem que se forem conscritos, já começaram errados e que vão pagar caro por isso?

Novamente, o jovem ribeirinho, que por instinto de sobrevivência e conforto do grupo, havia sido, ainda que inconsciente, porta voz involuntário, respondeu às perguntas do capataz, ou melhor, Sagento, como havia sussurrado um baixinho que estava sentado ao lado dele:

-Não sinhô, seu capataz... Adisculpa! “Seu” Sagento! Nóis vêi’aqui pra se apresentá no quarté, num sabe? Nóis só num sabia qui’tinha qui se juntá cum esse povo aí, qui o sinhô ‘tava gritano cum eles, num sabe? Mas nóis ‘tá aqui... Num Sabe? Pru qui’dé e vié, num sabe?

?!?!?!?!?!?!?!? – o Sargento fitou o jovem, estupefato.

-Então, as bonecas ficaram com o rabo descansando na raiz da mangueira, só esperando eu terminar de gritar com os imbecis que estão forma ali? É isso mesmo, o que eu entendi?

-Parezqui sim, “Seu” Sargento! Desta vez quem respondeu foi o baixinho.

-Muito Bem! Então, as moçoilas vão levantar os lindos rabinhos daí, e vão caminhando ACELARÁÁÁDO... Para postarem-se atrás do Primeiro Pelotão... Esse aí na frente! 1... 2... 3... CORREEENDO!

- o –

Após os conscritos passarem pelos exames finais de aptidão, todos foram organizados nos respectivos pelotões, a exceção do grupo que ficou apartado sentado debaixo da mangueira enquanto o Sargento gritava e tentava organizar os primeiros pelotões na frente do aquartelamento. Esse grupo apartado, o ribeirinho no meio deles, enfrentou a fúria reprimida do Sub Oficial.

De início, na frente dos demais conscritos, o "Grupo da Risada", como ficou conhecido, fez trinta exercícios de polichinelo; em seguida, sem tempo para descanso, mais trinta apoios; durante o exercício, todos, sem exceção, ficaram prostrados no solo. Com apenas dois minutos de descanso, deram cinco voltas ao redor do pátio interno do Quartel, cada volta com perímetro em torno de seiscentos metros. Quando terminaram as corridas, fizeram mais trinta agachamentos. Conseguiram algum repouso somente quando foram para a Intendência para receberem os uniformes e coturnos. Os demais conscritos, em seus respectivos pelotões, durante o martírio do "Grupo da Risada", fizeram apenas exercícios de Ordem Unida.

Logo depois dos conscritos receberem os materiais que usariam durante o tempo de caserna, a corneta do rancho tocou e todos em entraram em formação. O "Grupo da Risada" postou-se atrás do Primeiro Pelotão, e seguiram, marchando, em direção ao refeitório. No trajeto, sem o treinamento inicial, o "Grupo da Risada" foi ouvindo impropérios, os mais variados, do Sargento; uma vez que nenhum deles aprendera a mínima noção de como marchar em formação militar.

Terminado o rancho, sem formação militar, foram para o alojamento a fim de descansar, guardar malas, uniformes, escolher qual a cama do beliche e decidirem quem dormia embaixo ou em cima. Após todas as providências, quando pensaram que iriam ter tempo para cochilar ou, ao menos fumar um cigarro, a corneta tocou clamando-os para formação no pátio.

O restante da tarde foi dedicado para exercícios de formação. Era um tal de “Ordinário, marche!”, em seguida o Sargento gritava: “Alto!”, “Seeentido!”, “Dessscansaaar!”, novamente: “Seeentido!”, “Ordinário, Marche!”, “Direita, Vou Ver!”, “Esquerda, Vou Ver!” e novamente: “Alto!

Era um “Deus-nos-Acuda”... Um tormento sem fim! Quando pensavam que iriam ter um descanso, o Sargento gritava: “No Chão... E em Frente!

E todos deitavam no asfalto quente e saiam se arrastando feito teiú catando ovo em galinheiro. Em seguida o Sargento gritava: “De Pé!”, “Em Formação!”, “Sentido!”, “Ordinário, Marche!

Os dias que se seguiram mantiveram a mesma rotina: “deita, levanta, anda, fica duro, descansa, deita e levanta de novo, sentido, ordinário, marche, alto”. No começo da quinta semana do mês de Fevereiro, uma Terça-Feira, todos pararam em frente à Intendência, e cada um dos recrutas recebeu um fuzil, e a partir daí, passaram a receber instruções de Ordem Unida com a arma, ou correndo com o fuzil atravessado frente ao peito. E aí, o que estava difícil, ficou pior.

Na Sexta-Feira, os recrutas marchavam com certo ânimo, ainda que o sol escaldante queimasse a moleira de qualquer vivente que saísse da sombra da marquise ou das árvores, e era mais ou menos umas dez horas da manhã, quando o Sargento, numa insuspeito fio de bondade, resolveu levar os pelotões, sempre marchando, para debaixo de uns pés de mangueira, e lá, fez uma pequena pausa nos exercícios. Os recrutas, em petição de miséria, suando que nem tampa de chaleira, em uníssono, pediram permissão para beber água, ir ao banheiro, ou apenas fumar um cigarro.

O Sargento, com relutância, concedeu autorização. Mas adverti-os que teriam apenas dez minutos para irem ao bebedouro ou ao banheiro. A escolha era deles, vez que os bebedouros ficavam em um extremo do quartel, e os banheiros, no outro.

Depois dos dez minutos, cronometrados, o Instrutor com um apito, chamou os retardatários, e com nova ordem de comando, colocou os pelotões em forma.

Enquanto os conscritos fritavam ao sol inclemente da Amazônia, o Sargento tentava justificar a severidade dos treinamentos para o Oficial de Dia, dando informações sobre o visível progresso dos treinamentos. Logo depois, o Sargento batendo os calcanhares e fazendo continência, despediu-se do Tenente R2 e voltou sua total atenção aos pelotões. E foi aí que o Sub Oficial percebeu a falta do ribeirinho petulante, membro do "Grupo da Risada", o mais visado de todos os conscritos.

-Alguém tem ideia de onde se meteu o Zero Vinte e Nove?

Silêncio sepulcral foi a resposta dos jovens soldados, ensopados de suor.

-Ateeeenção, CONSCRIIITOS! Onde foi parar o ZERO VINTE E NOOOOVE???? – o Sargento inquiri-os novamente, extremamente irritado.

Timidamente, alguém saiu da formação e levantou o braço, vagarosamente. Era o baixinho que estava sentado ao lado do ribeirinho petulante, no dia da apresentação dos conscritos, lá debaixo da mangueira, em frente ao aquartelamento, membro do "Grupo da Risada".

-Seu Sagento...

-“Seu Sagento”, não! “Senhor Sargento!” - o Sargento corrigiu - É assim que se fala, CÚ-DE-VACA!

-Antaum-se, Sinhô Sar... Sar... Sarrgento! Da úrtima veiz qui’eu vi o Zero Cinquenta e Nove, ele ‘tava ino pra sala do Cumandante, num sabe? Cum arma e tudo... E ‘tava cum a baioneta na ponta do fuzil, num sabe?

Estupefato, o Sargento, a princípio, pego de surpresa, de repente arregalou os olhos e saiu correndo em direção à Sala de Comando do Batalhão. Enquanto corria, como um filme, uma tragédia ocorrida anos antes, passava pela sua cabeça. E à medida que o filme se aproximava do ápice, o Sargento acelerava a corrida, franzia a testa e aumentava a sudorese.
- o -
Ocorre, que anos antes, durante as primeiras semanas de treinamentos, um recruta havia surtado, e num ato insano, metralhara um Oficial. Após esse trágico episódio, a Terceira Companhia de Fronteira e o Comando Geral da Amazônia ficara traumatizada por muito tempo. A partir daí, a orientação superior era que, mantendo a disciplina, os Instrutores, Oficiais ou Sub Oficiais, procurassem respeitar os limites físicos e psicológicos dos conscritos.

O Terceiro Sargento Odiomar, tinha um viés sádico que aflorava todo início de ano com os primeiros treinamentos dados aos recrutas. Mais tarde, esse sadismo era alimentado nos severos treinamentos de guerrilha na selva, onde os Conscritos deixavam a categoria de Recrutas para tornarem-se, de fato, em Soldados, após conquistarem a Boina Verde com o escudo da cabeça estilizada de uma onça. Então, a partir da conquista da Boina Verde, eram considerados Guerreiros de Selva. A elite do Exército dos Batalhões da Amazônia. Não era fácil conquistar a Boina Verde!

Portanto, em razão da severidade dos treinamentos, a orientação do Comando Geral era, cautela e perspicácia no treinamento dos soldados.
- o -
Essas duas palavras, “cautela” e “perspicácia”, afligiam o Terceiro Sargento Odiomar, pela simples razão de não pertencerem ao seu vocabulário. E, à medida que elas martelavam seu subconsciente, acelerava as passadas. Chegou em frente ao prédio onde estava localizada a Sala de Comando, esbaforido e botando os bofes pela boca. Atravessou a porta de entrada como um raio, e na ante sala, enquanto tentava recuperar o fôlego e um pouco de compostura, viu pela porta entreaberta, o Soldado Zero Vinte e Nove, parado frente ao Comandante, que o ouvia entre surpreso, irritado, e pelo quase imperceptível sorriso no canto dos lábios, um observador mais atento diria, até divertido.

-Ói, pelo qui’eu intendi inté agora, o Sinhô é quem manda ni’tudo aqui. É o Gerente, nu'é? Qui nem no siringar!

O Major, Comandante da Terceira Companhia de Fronteira de Guajará Mirim-RO, tentou abrir a boca para chamar o Ordenança, no entanto, o jovem beradeiro, num movimento brusco; talvez tentando ajeitar o fuzil que segurava junto ao tórax, inadvertidamente, o apontou, com a baioneta calada, diretamente para o peito do Oficial Comandante. E, diante do histórico do atentado de anos anteriores, o Major preferiu calar-se e ouvir o que aquele soldado aloprado tinha a dizer. Mais tarde ele se entenderia com Ordenança.

-Acuma eu ‘tava dizeno... O sinhô é o Gerente desse lugá de doido! O trabáio aqui num é pra gente de vergonha nas venta naum, num sabe, Seu Gerente!

Ato contínuo, enquanto falava, o recruta retirou a bandoleira da arma do ombro, e colocou o fuzil em cima da mesa; retirou o quepe e o colocou também; e foi retirando o resto das peças do fardamento, camisa camuflada, camiseta, coturno, meias e calça, enquanto desfilava suas razões, ficando somente de cueca.

-Ói, Seu Gerente, taqui sua ispigarda, seu chapéu, sua camisa tobém; suas bota, sua meia e sua calça. Mande batê a minha conta e veja si’eu tenho argum sardo. Vô-m’imbora desse lugá dos inferno... Aqui, nu’fico nem mais um minuto, num sabe?

Nesse ínterim, o Major, com o canto do olho viu o Sargento, mais branco que uma vela. Chamou-o junto com o Ordenança, e os dois levaram o jovem seringueiro/beradeiro para passar uma boa temporada no xadrez do quartel.

Epílogo

Semanas depois, após um rápido IPM - Inquérito Policial Militar, para apurar o evento da invasão ao Gabinete do Comandante por um Recruta surtado, e mais grave ainda, armado com fuzil de baioneta calada apontado diretamente para o peito de um Oficial Comandante. Decidiu-se:

a) - que o jovem beradeiro fosse dispensado do Exército Brasileiro por desvios psicológicos e incompatibilidade hierárquica;

b) - que o Sargento Odiomar fosse orientado a solicitar transferência para a Reserva;

c) - que o Ordenança fosse privado de sua liberdade por um período não inferior a quinze dias;

d) - que o treinamento inicial dos Conscritos, a partir da publicação do BD - Boletim do Dia, fosse mais humanizado, evitando-se palavras e atos não condizentes com a dignidade humana.
 

Nota do Autor:

Essa estória é baseada em fatos reais. O nome do jovem beradeiro foi omitido para preservar a sua identidade, bem como o nome de guerra do Sargento foi trocado com o mesmo intuito.
 
João Pessoa-PB
Abr/2020
 
[1] Catraia: é uma embarcação de pouco calado, movida a vela, remo ou do tipo canoa motorizada, que se emprega no transporte de passageiros, e que é geralmente manobrada por uma só pessoa, o catraieiro.
[2] Apoitada: apoitar; o mesmo que ancorar.
[3] Cernambi. É o látex natural que após ser extraído da seringueira é deixado nas canecas para que sofra um processo de coagulação espontânea ou pode ser feito a adição de uma solução ácida para que antecipe sua coagulação.
[4] Beradeiro: Pessoa nascida ou moradora na margem de um rio, na beira de um rio. Em Porto Velho-RO, diz-se da pessoa que nasceu ou mora na beira do Rio Madeira. No linguajar coloquial dos próprios beradeiros, pronuncia-se “beradero”, com o último ‘E’ fechado (beradêro).
[5] Curumim: criança; menino de pouca idade; garoto ou rapaz.