O MONSTRINHO

O MONSTRINHO

Lembro-me bem daquele dia, pude ver pelas frestas do meu esconderijo o momento exato em que a porta se abriu. Minha mãe entrou primeiro, seguida pelo meu pai. Trazia nos braços uma pequena trouxa que eu imaginei, fosse muito pesada, já que ela tinha aquela expressão cansada dos dias em que limpava todos os armários e fazia faxina. Olhei nervoso a volta deles e respirei aliviado, somente os dois, e eu escondido atrás do armário, A família perfeita. Respirei aliviado. Fazia algum tempo que minha mãe vinha me perturbando com aquela história de me dar um irmãozinho, de vez em quando me pegava em seu colo e falava sobre ele, de como seríamos amigos e tudo mais. Isso foi no começo, antes que aquele “caroço” enorme na barriga dela crescesse me empurrando cada vez mais para fora do seu colo gostoso. Perdi horas tentando imaginar que tombo enorme minha mãe teria levado pra ficar com um “galo”

tão grandão.

Meu irmão, que viria sei lá de onde ia se instalando perigosamente rápido em minha casa. Continuamente chegavam pacotes, que iam se acumulando num canto do meu quarto, pilhas de fraldas e brinquedos que não eram meus. Até minha cortina de homem aranha fora trocada, no seu lugar minha mãe pendurara uma aberração verde clara que combinava com os babadinhos que enfeitavam o berço de madeira branco do meu detestável irmão

Como meu pai parecesse não se importar com o estado de minha mãe decidi que eu mesmo cuidaria dela. Pedi a Arminda nossa empregada que me desse todo gelo que houvesse em nossa geladeira. Já acostumada com minhas traquinagens ela tentava imaginar que tipo de arte eu estaria preparando.

_ O que você está aprontando Lucas? Para que você quer este gelo?

Não respondi. As pessoas estavam se comportando de maneira estranha desde que aquele “galo” gigante começara a crescer na barriga de minha mãe.

_ Deixe pra lá, eu não quero mais brincar disso. Vou brincar de juntar pedrinhas no quintal. Me dá uma daquelas sacolas de supermercado?

_ Tudo bem. Mas não vai colocá-la na cabeça ouviu?

Tomei depressa a sacolinha antes que ela desistisse de entregá-la e fui saindo. Dei a volta na casa e saí quieto. Poucos metros depois e eu já chegara ao portão da minha vizinha, dona Mirtes. Minha mãe e eu íamos visitá-la de vez em quando , nesses dias enquanto elas trocavam amostras de tricô eu me refestelava com os biscoitos saborosos que ela preparava. Com certeza ela me ajudaria, era uma adulta legal. Empurrei de leve o portão que se abriu facilmente, me aproximei da porta e como não alcançasse a campainha bati com força na pesada porta de madeira. Quando meus punhos estavam vermelhos de tanto bater, senti a porta se abrir. Dona Mirtes parecia espantada por me ver ali.

_ Lucas? Você está sozinho? Onde está sua mãe?

_ Ela está em casa! Eu... é ... a senhora poderia me arrumar bastante gelo? Disse rápido estendendo a sacola vazia.

_ Gelo? Para o que quer gelo querido? Perguntou me pondo pra dentro e caminhando até a velha geladeira.

_ É para” baixar um galo”. Respondi.

_ Oh! Pobrezinho! Venha cá. Disse puxando-me para si e apalpando delicadamente meu coro cabeludo.

_ Não é para mim. __ Expliquei, enquanto saia, apressadamente.

Venci rapidamente a pouca distancia até minha casa mas até chegar ao sofá onde minha mãe descansava, mais da metade do gelo já havia derretido.

_ Mamãe, chamei bem baixinho, estendendo a sacola molhada.

_ O que é isso querido?

_ É para o seu “galo”, disse apontando sua barriga protuberante.

_ Oh, querido venha cá, disse me puxando para si num abraço. Isso não é um “galo”, é seu irmãozinho, me dê sua mão. Pude ver antes mesmo de sentir as pequenas ondulações que faziam a barriga de minha mãe se transformar numa coisa viva e aterradora. Minhas pernas ficaram moles como o mingau de aveia que eu comera no café da manhã. O que quer que fosse que estivesse na barriga dela continuava se mexendo, preparando suas garras alienígenas para me agarrar a qualquer momento. Foi o chute que eu senti contra a minha mão que me tirou daquele torpor. O grito de terror que estava preso em minha garganta se libertou e com ele um rastro de mingau azedo que foi me seguindo pelo tapete da sala até o quintal.

Passei vários dias evitando minha mãe e sua assustadora barriga, até o dia em que meu pai foi convocado as pressas para levá-la ao hospital, onde, segundo me disseram, teriam ido buscar meu irmão. Fui levado a casa dos meus avós até que meus pais voltassem. Como era bom estar com a vovó. Tudo pareia tão normal ali. Sentado na velha cadeira de balanço com uma tigela de bolinhos no colo, eu quase podia me esquecer da ameaça alienígena que pairava sobre mim. Meu período de paz durou pouco, porém. Três dias depois, fui acordado mais cedo. Enquanto me ajudava a me vestir, vovó me deu a terrível noticia:

_ Eles chegam hoje meu bem. Vamos a sua casa, você precisa estar bem bonito para receber seu irmãzinho.

Embora eu estivesse com fome, quando me sentei a mesa, preferi não comer mingau.

Assim que chegamos a minha casa subi correndo os degraus que levavam ao meu quarto. Despejei depressa o conteúdo de uma mochilinha plástica que guardava uma coleção de jogos de montar. Guardei lá as coisas que eu achava importante: o Senhor Cabeça de Batata, meu jogo de canetinhas e meu caderno de desenhos. Roupas, achei que precisaria delas, mas as gavetas eram tantas... Abri a das cuecas pegando uma delas, detestava quando nos dias de calor minha mãe concluía que eu estaria melhor sem elas. Nesses dias me sentia desprotegido, quase pelado. Abri de novo a gaveta e peguei mais uma. Peguei também meu travesseiro, não poderia me imaginar dormindo sem ele. Finalmente estava pronto para partir, desci sorrateiramente as escadas quando ouvi o ruído do carro de meu pai entrando na garagem. Não sei nem como consegui chegar até o grande armário da sala de jantar e me esconder numa das grandes quinas que ele formava na juntura das paredes. Foi de lá que pude ver a chegada dos meus pais. Nem nos meus sonhos mais felizes poderia imaginar ver minha mãe chegando inteira, sem aquela barriga medonha e sem o meu temível irmão. O alivio foi tão grande que eu soltei minha mochila de fugitivo e corri até ela me abraçando as suas pernas.

_ Querido, que bom chegar em casa e encontrar você! Eu estava com muitas saudades! Foi naquele momento que a trouxa verde clara começou a se mover. Eu não podia acreditar que havia sido tão burro, a manta, os mesmos babadinhos das cortinas... Já ia dando uma meia volta ligeira quando meu pai me suspendeu em seus braços bem a altura da pequena trouxa que minha mãe estava desembrulhando. Primeiro foram duas pequenas mãos cor de rosa e depois um rosto avermelhado e inchado.

_ Não é lindo? Diga oi para seu irmão!

Bem! Lindo, decididamente ele não era. Na verdade era até bem feio pensei observando o remexer de sua boca banguela. O fato é que parecia inofensivo, e isto bastava.

. Durante três meses pude dormir em paz, já que o pequeno desdentado dormia num cesto que fora levado ao quarto de meus pais. Meu sossego acabou no dia em que minha mãe decidiu que já era hora de o bebê ir para seu próprio quarto: o meu. Não que eu o detestasse agora. Até achava engraçado seus balbucios, tinha certa pena de suas penosas limitações como agora, quando ele tentava agarrar com seus braçinhos curtos o móbile que nossa mãe pendurara em seu berço. Tentava imaginar como me sentiria se pendurassem meus controles de vídeo game num lugar fora de meu alcance me obrigando assim a passar horas sem fim na tentativa de alcançá-los. Me senti solidário com o pequeno intruso naquele momento, a casca de indiferença rachando dentro do meu peito. Seja lá o que tenha ocorrido, o bebê, de um impulso, alcançou um dos palhacinhos do móbile, fazendo com que os outros se chocassem entre si. Não sei se foi o barulho do brinquedo ou o grito de incentivo que eu dei. O fato é que ele se assustou, pude perceber quando a boquinha pequena foi se apertando formando um beicinho nervoso e aí... o berreiro. Tive vontade de tapar os ouvidos e dar as costas aquela criatura chorona, mas não pude. Ao invés disso me aproximei do berço. Enquanto tentava desentortar o mobílie senti sua pequena mão agarrar meu dedo com força. Ele se agarrava em mim como eu me agarrava ao pescoço de minha mãe quando era acordado por terríveis pesadelos. Olhei de novo para o rostinho assustado e passei as mãos desajeitadamente por seus cabelos macios.

_ Está tudo bem, não precisa ter medo, eu vou cuidar de você, e bem baixinho para que só ele ouvisse sussurrei um segredo:

_ Eu te amo, maninho!

Hyanna
Enviado por Hyanna em 12/10/2007
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