A mãe homenageada - episódios da Pandemia

Enquanto Jeferson, na recepção do Hospital, apreensivo e esperançoso, aguardava informações sobre a sua mãe, que se encontrava hospitalizada por Covid-19, na rua uma ruidosa carreata de automóveis luxuosos clamava pelo fim do isolamento social. Jeferson foi ver a confusão estrondosa na via pública.

Era uma fila imensa de carros grandes e chiques, ocupados por pessoas bonitas e bem vestidas. Um homem branco, de camisa amarela Lacoste e óculos de sol de três mil dólares, equilibrando metade de seu corpo atlético para fora da janela de sua Land Rover, gritava efusivamente num megafone pela “sobrevivência da economia. Morte aos comunistas!” Sua bela esposa conduzia o carrão, e no banco traseiro acomodava-se belas crianças, de roupas verde-amarelo. Elas sorriam quando a mãe diligente buzinava em pequenos intervalos na frente do Hospital. Bi..biiii...bi..biii. HAHAHAHA! Bi... Biiii. HAHAHAHA! Bi...biii...biiii. HAHAHAHA! A família toda ostentava máscaras protetoras de rosto. Coloridas. Encantadoras.

Jeferson então sorriu da cena. Não soube por que, mas achou engraçado o paradoxo. Voltou para dentro, da lotada recepção. A TV afixada na parede exibia o pronunciamento do Presidente da República. O homem de paletó, de fala desorganizada, e olhos vidrados, amenizava a gravidade do momento, e culpava os governos estaduais por algo sem nexo. Reproduzia a teoria conspiratória da intenção chinesa de dominar o mundo. O comentarista político do canal de TV sugeriu uma eventual demência do presidente. Alguém desligou o aparelho. Uma senhora desmaiou e macas com pacientes voavam pelos corredores, de onde de quando em quando viam gritos e lamurias de gente desesperada, despedaçada. Ouviu-se uma terrível informação, apavorante. “Não tem mais equipamento!”

Jeferson se tremeu todo e viu no semblante das pessoas, que também aguardavam na recepção, uma tristeza torturante e comovente. A dor contagia como o vírus. Um pai de alguém , uma tia de outro, um irmão de alguém, todos ali, como por força clarividente, cruzaram seus olhares com o de Jeferson, segundos antes de uma voz chamá-lo, lá de dentro, de algum corredor daqueles, de macas circulando num vai e vem, e portas se abrindo, rangendo suas velhas dobradiças. Então ele se encaminhou por uma porta lateral. Uma enfermeira de olhos castanhos, com touca de cirurgia e máscara facial, esperava-o no corredor. “Sinto muito...”

Quando Jeferson assomou porta afora do Hospital, a estrondosa carreata ainda atravessava a rua. Ele se ajoelhou na calçada, e chorou um choro dolorido, pungente. Manteve seus braços magros para cima, em desespero, até que suas mãos de frentista de posto, manchadas de óleo, uniram-se para esconder o rosto, ou talvez para estancar as lágrimas, na altura do nariz e da boca. Depois berrou como uma criança, e o seu grito de sofrimento foi abafado pelas buzinas e pelos discursos daqueles homens brancos e ricos, preocupados com a economia brasileira. “Estão mentindo para o povo brasileiro. A pandemia é invenção dos comunistas...” vociferavam seus equipamentos sonoros.

Uma mulher de dentro de um daqueles luxuosos carros, vendo o jovem chorando, suplicando na sarjeta, pediu ao marido que parasse o veículo. Jeferson a encarou, não entendia o que aquela elegante família queria dele. Entretanto, a caridosa mulher, que o observava fixamente, como uma boa samaritana, primeiro séria, depois, com um sorriso de desprezo, lhe falou. “Vai trabalhar vagabundo. Sua lágrima não me engana, vagabundo!”

A carreata seguiu sua jornada, lutando pelo Brasil. E Jeferson só não se jogou debaixo de um automóvel em movimento, pois foi contido, no instante derradeiro, por um idoso que acabara de sair da recepção do Hospital. “Está tudo bem, meu filho. É o desejo de Deus.”