Insuportável

Outubro de 2001. Lembro daquele dia. Eu não estava com a menor vontade de ser agradável, estava num lugar estranho, fora do meu habitat natural e tudo me parecia forçado demais. Mas no meu paraíso tudo estava perfeito, Adão e Eva reinavam soberanos. Vida plena, satisfação absoluta, minha matéria preferida era Semiótica e eu não perdia uma aula da louca da Deise.

Uma reunião inesperada para apresentar sabe lá o que, não sei aonde, com sei lá quem... Eu não ligava a mínima. Lá vou eu arrastando a bola no pé e pensando “o que eu tô fazendo aqui?”. A resposta veio com uma pele branca, uma cara lasciva, um cabelo claro e penteado da modinha, um par de olhos tão grande, tão verde azul cinza, tão intenso que – por um instante – acreditei que só você estava ali na sala. Nossa! Lembrando bem – e agora que o pecado parece não morar ao lado – eu nunca tinha percebido os detalhes daquele momento como percebo agora.

Não foi só um olhar, mas, para mim, não seria nada, além disso. Isso era o que uma parte de mim achava. A outra fugia, não podia nem pensar na possibilidade, achava que era uma loucura, um absurdo. Mas você era terrível, incoerente, cativante e eu te odiava por isso. E você gostava de música – das minhas músicas – e falava meu idioma e gostava de Comunicação e gostava de fotos e andava cantando e escrevia bem e me ligava para falar boa noite e era incuravelmente mulherengo. Insuportável. Ainda lembro da sua pose fumando, com um pé encostado na parede, usando uma calça clara, com o sol batendo no seu rosto e você fechando o olho por causa da claridade. Como você me irritava, insuportável!

A gente tinha nossos signos – a nossa semiótica. Nossa hora do café, nossas inúmeras viagens de elevador e um – único e roubado – beijo. Foi roubado sim. Até porque, tudo era perfeito demais no meu paraíso. E você, tudo o que estava fora do Éden. Logo, impossível. Inadmissível. Insuportável!

E, depois de várias luas, o mundo girou. Você mudou, eu mudei. Nós nos transformamos. De alguma forma sempre nos encontramos, você aparece quando eu penso em você. E traz de volta tudo o que já estava lá, esquecido. Meu passado - e um pouco de arrependimento - tem nome, sobrenome e apelido. Insuportavelmente, no meio da conversa você me manda isso:

Tem horas que eu começo a lembrar de lugares que conheci, coisas que fiz e, agora conversando com você, me bate um sentimento muito forte de saudades de ter vivido coisas que não vivi. Chamo de saudades porque é uma dorzinha lá no fundo... Dor sem remédio... Mas o engraçado é que não me parece claro que isso se reverteria, ou que essa dor poderia sumir se hoje pudéssemos retomar isso... O que caracteriza isso, aliás, é exatamente a indissolubilidade desse sentimento. Por não fazer mais parte do tempo presente. Uma página que não foi fechada, mas não foi escrita e é na barriga que dói Eu amo você! E amarei sempre.

O fim dessa história? Quem sabe... Talvez seja só uma lenda. Urbana. Nessas horas, lembro daquele dia e penso: Insuportável.

Beijos, Adri

Música – Fernanda Abreu – Você pra mim