SUBTERFÚGIO...

“Quarentena? Ficar presa dentro de casa? Comigo não! Nem vem que não tem. Esse vírus não me pega.”

De repente lá estava ela... Da cozinha pra sala, da sala pro quarto, do quarto pro banheiro, do banheiro pra varanda, da varanda pra cozinha... e o ciclo interminável do passeio pela casa parece não ter fim.

Samanta abre a janela de seu quarto que dá direto para a rua. Tudo parece tão deserto... Tão sem vida... Tão sem graça, lembra até uma fotografia antiga amarelada pelo tempo que longe se vai... Aquele momento preso num determinado espaço da história da humanidade.

Tantos filmes ela já assistiu, mas aquele do Will Smith “Eu sou a lenda” a marcou nesse momento de pandemia. - “Será que estamos vivendo um apocalipse zumbi?” –pensa ela com uma ponta de angústia que dilacera seu peito. Mentalmente faz contas e mais contas sobre o número de mortes que nosso país poderá vir a ter. Mas nada a chocou mais do que quando viu as imagens do Equador; não conseguiu conter as lágrimas... - “Corpos sendo queimados no meio da rua. Quanta barbárie! Meu Deus! O homem sendo testado e provando que ainda não evoluiu!”

Nessa quarentena Samanta tem bastante tempo para pensar em sua vida. Separou-se do marido e agora vive com os pais numa casa aconchegante no interior do Paraná. Seu ex marido e seus dois filhos já maiores de idade vivem na grande São Paulo. –“Quanta saudade dos meus filhos, meu Deus! Ah se eu pudesse ir vê-los...!” – Seu peito parece que vai explodir de tanta saudade.

Ali naquela casinha cheia de rosas plantadas bem no quintal da frente vivem Samanta e seus pais. Quem cuida das rosas é dona Leila, mas ela não pode se esforçar muito, pois sofre de enfisema pulmonar (fruto de uma vida cheia de tabacos no passado); agora ela precisa de vários tipos de remédio para poder viver, são suas “bombinhas de ar” como ela mesma diz. Seu Antônio, aposentado, ajuda em tudo o que pode.

Certo dia de março Samanta chega para dar aula (ela é professora), mas é avisada de que os alunos serão dispensados, pois o “COVID-19 é altamente contagioso”, diz a diretora... Samanta vai vendo a escola se esvaziar devagar, os alunos correm alheios a tudo (não que não saibam do tal vírus, mas para eles tudo é festa... imagina então serem dispensados das aulas sem data para voltar!)... As crianças e os adolescentes vão sumindo portão afora; a escola que há alguns minutos estava repleta de risos, correria de crianças pra lá e pra cá, gritos estridentes (e como gritam) de repente vai silenciando... esvaziando... Agora só o silêncio lá fora. Todos se foram. A escola está deserta... sem vida. Até quando? Quem saberá responder?

A vida tornou-se estranha. Tédio? Samanta não saberia definir, mas quem poderia culpá-la por não ter uma resposta?

A vida deve prosseguir. De uma forma ou de outra sempre achamos um jeito de não deixar que a humanidade se acabe. Agora é viver besuntado de álcool 70, máscara para ir ao supermercado, lavar até o pacote de farofa: mesmo planeta, novas regras.

Agora já estamos em abril. Os pais de Samanta descansam no quarto; é a sesta da tarde. Samanta vai nas pontas dos pés ouvir por trás da porta: - “Será que estão dormindo?” – Ela ouve o ronco do pai.

- “Quer saber, esse tal de coronavírus não vai me prender aqui! Tô nem aí pra ele.” Ela decide sair. Os pais têm medo, são do grupo de risco, mas ela não... Ela não é do grupo de risco. Ela é jovem, recém separada, precisa viver, curtir a vida.

Ela se arruma toda, passa seu melhor batom, coloca seu melhor vestido. O sapato de salto dá o toque especial que toda mulher precisa... A bolsa combina com seu estado de espírito.

Silenciosamente ela atravessa a sala, pé ante pé... Abre a porta sem fazer barulho. Entra em seu carro e o portão automático se abre. Já na rua liga o som do carro no último volume “Abra suas asas, solte suas feras, caia na gandaia, entre nessa festa...”.

Samanta sorri aliviada. As janelas do carro estão abertas, ela coloca o braço esquerdo para fora. Quer sentir o vento... a liberdade daquele momento. Lá fora tudo parece seguir seu fluxo normal. Os bares estão abertos, as pessoas se aglomeram, sorriem, tomam cerveja como se nada tivesse mudado. É a vida fluindo...

Ela vê crianças se divertindo no playground... A vida parece tão normal! As crianças estão sorrindo, os pais estão à sombra descansando.

“Vou até a praia!” – O carro toma velocidade e já ao entardecer ela avista o mar - “Tão lindo! Tão revigorante!” – Ela desce do carro, tira os sapatos e caminha tranquila pela areia branca e morna. – “Hummm! Que delícia!” O som das gaivotas e o marejar das ondas é sinfonia para os ouvidos de Samanta. Algumas pessoas caminham despreocupadamente pela orla marítima... Tudo tão perfeito!

Ao longe Samanta avista um belo homem que vem devagar em sua direção, cabelos dourados que refletem os últimos raios do sol crepuscular...

- “Samanta?” - Diz ele sorrindo ao se aproximar – “É você mesma?” Ela sorri ao reconhecer aquele homem... Um antigo amor da adolescência. – “Como ele está lindo!” - Inacreditável tal cena. O sol se pondo e os dois ali, revivendo um grande e imortal amor. Ela fecha os olhos devagar...

- “Samanta! Samanta!” – Uma voz ao longe a chama. – “Você está dormindo com o livro no rosto, minha filha!” Era dona Leila rindo da filha. Samanta espreguiça-se na cama e sorri para sua mãe. – “Acorde, meu bem, acabei de passar um café fresquinho!”

Você, leitor, que achou que realmente Samanta tinha saído de sua casa cometeu um ledo engano... As viagens e saídas da moça são feitas através de um portal chamado “LIVRO”. Ela jamais colocaria a vida de seus pais em risco. Ela quer voltar para a escola e encontrar-se com seus alunos, sem faltar nenhum; quando fizer a chamada na sala de aula ela quer ouvir “presente” da boca de cada um deles... Ela quer viajar pra São Paulo para rever seus filhos (Carol e Paulo). Por isso ela, apesar de tudo, cumpre sua quarentena.

É, meus queridos... Aproveitemos esses momentos para reflexão de tudo o que vivemos até aqui... Enquanto isso façamos nossas viagens através dos portais chamados livros, televisores, celulares, notebooks, álbuns de fotografias, boas músicas...

FIM... mas só se você quiser (como diria uns amigos meus que vivem num meteoro).