Em torno da pandemia

Beto se permite um luxo: junta dinheiro para comprar uma poltrona confortável. Sempre que dispõe de tempo, sai a procurá-la: visita lojas, examinando, comparando preços. Até que um dia, fecha negócio – como se fosse um artigo de luxo – e instala-a na pequena peça que lhe serve de escritório. Afasta caixas, empilha material, a fim de abrir espaço para a nova aquisição: trata-se de uma poltrona diferenciada.

Poucos meses depois, surge a pandemia. O risco de contágio leva à interrupção de atividades rotineiras, exige uma série de cuidados, força o isolamento. Beto sente falta das aulas, sobretudo das aulas particulares, que lhe complementam o parco salário que recebe no magistério estadual. Sente falta da mulher, que, na condição de técnica de enfermagem, está na linha de frente do hospital.

As primeiras semanas, preenche-as com leituras, ocupações caseiras, celular: a nova poltrona se revela preciosa. Mas, a reclusão é longa, sinais depressivos começam a assombrá-lo. Procura reagir, analisa as possibilidades que ainda lhe restam na meia-idade. Quem sabe o professor de matemática faz um esforço para virar engenheiro, no momento em que a carreira do magistério se deteriora? Suspira, é uma carreira que abraçou com gosto, há tantos anos. Apesar de todas as dificuldades, persiste.

Instintivamente, Beto pega o material da escola. Senta na poltrona, abre a pasta, tira o pacote com os cadernos dos pequenos - que recolheu num dos últimos dias de aula e não chegou a devolver - desembrulha-os. Vai folheando-os ao léu, ansiando pelo dia em que tudo será retomado, as aulas voltarão a ser presenciais, ele poderá interagir com seus alunos, que considera como filhos. À noite, a mulher encontra-o meio adormecido, com a pilha de cadernos nas mãos.

OBSERVAÇÃO: Exercício criativo, proposto por uma coordenadora de grupo, membro da Academia Internacional de Artes e Letras Sul-Lourenciana. A tarefa consistia em abrir um livro, ao acaso, na página 65, e trabalhar com as palavras da primeira frase dessa página. No livro "A estranha nação de Rafael Mendes", de Moacyr Scliar, encontrei: "Senta na poltrona, abre a pasta, tira o pacote com os cadernos, desembrulha-os".