PASSOS NA ESCADA

As lembranças rolam sob a chuva de verão. Estou só. A hora já se faz tarde, passa da meia noite. Ouço passos na escada. Aguço bem os ouvidos e um frio transpassa meu estômago. Claro, não faz calor devido o dia ter sido inteiramente chuvoso.

Sou a última de uma grande família quatroscentona que migrou para o Brasil em tempos da primeira grande guerra.

Chegamos e fizemos fortuna, meus pais não mediram esforços para que pudéssemos prosperar. Foram donos de uma da maiores vinícolas do sul do país. Depois da sua morte, continuamos na luta com as uvas especiais.

Fizemos de tudo para que ele sobrevivesse, mas foi em vão. Mamãe levou-o à Europa, consultando os melhores especialistas, sem nenhum resultado. Certo dia, antes de irem para o aeroporto ele veio a óbito. Concordamos que fosse sepultado lá mesmo, em sua pátria, aproveitando uma vaga no jazigo da família.

De volta ao Brasil, mamãe não foi mais a mesma. Andava sempre chorosa e triste. Sua coragem e disposição se foi junto com meu pai. Em pouco tempo, ela faleceu também. Foi bastante triste para nós, quando descobrimo-la morta em seu quarto, sem ao menos ter podido chamar por socorro. Segundo o corpo médico, sua partida se deu, devido a um coágulo no cérebro que explodiu enquanto dormia. Menos mal, morreu só, porém sem sofrimento. Ficamos sós. As três jovens filhas solteiras e sem nenhum pretendente, uma vez que mamãe, era tão ciumenta e manipuladora que nenhum rapaz servia para casar com a gente.

Estávamos quase que desprotegidas, não fosse minha irmã do meio ser tão corajosa e mandona quanto mamãe.

Depois dos sete dias de luto confinadas em casa, Sara foi à capital e embarcou toda a safra de vinhos para a Europa. De volta, reunímo-nos e ela dividiu as tarefas administrativas e convencionais entre nós. Eu fiquei com a pior parte: pôr a mão na massa junto com os mais de vinte colaboradores. Antes era mamãe que fazia isso, contudo, não me fiz de inexperiente, fui às vias de fato.

Minha irmã mais velha foi cuidar da produção de vinhos.

No meio dos grandes parreirais, eu também, me juntava aos colhedores. No fim do dia verificava se o trabalho foi produtivo. Em pouco mais de quinze dias, pusemos as uvas em seu devido lugar. O trabalho era de sol a sol. Durante a colheita não havia descanso, senão, parte dela se perdia.

Nesse ano, a produção foi recorde e dobramos o capital que mamãe deixou.

Devido ao trabalho árduo, minha irmã mais velha, também ficou doente, da mesma forma que papai. Largamos tudo para cuidar dela.

Foi uma grande labuta, até que vimos seu fim triste e doloroso.

Permanecemos trabalhando. Agora, mais trabalho, com menos mão de obra.

E nossa juventude ficando para trás.

Chegávamos à terceira idade.

Nosso desejo era continuar progredindo, porém, as forças se tornaram frágeis.

Decidimos continuar morando ali, porém arrendar a plantação de uvas, o maquinário de processamento e a adega, seria a solução mais viável.

Até que Sara fez bom negócio. A parte que ficava para nós, dava para continuar uma boa vida, viajar, enfim, fazer o que desejássemos.

Certo dia, Sara veio conversar comigo e dizer que toda a fortuna que tínhamos de nada valia. Quando morrêssemos ficaria para o estado, porque não tínhamos herdeiros. Isso me entristeceu bastante. A essa altura da vida, olhar para trás e ver que se trabalhou muito para nada. Duas mulheres maduras e sozinhas.

Nesse ano, fomos à Europa visitar alguns primos que ainda tinha por lá.

Chegamos em Milão pela manhã. Nossos primos Lorenzo e Chiara foram nos buscar. Eles também, administravam a herança deixada pelo pai, que lhes confiou uma grande tecelagem. O mesmo era irmão de mamãe. Trata-se de uma fortuna incalculável, mas, herdeiros não lhes faltavam, filhos, noras, genros, netos... A família era numerosa.

Descemos depois de três dias para a casa de veraneio.

Todo o corre-corre, a algazarra de crianças e adolescentes que ouvia e presenciava, sentia um grande aperto no peito e uma pontinha de inveja dos primos. Eles é que eram felizes vivendo no meio de muita gente. Quem estivesse de fora, achava que era briga, de tanto que falavam alto e ao mesmo tempo.

Permanecemos com eles por um mês, depois retornamos em casa.

Duas solteironas, que um dia foram belas passavam seus dias a tricotar, coser as próprias roupas, cuidar de meia dúzia de ovelhas e sentir na carne a solidão. Solidão essa, que foi se tornando muito pesada.

Todas as noites, Sara e eu conversávamos muito sobre o ontem e o hoje. Só pegávamos no sono de madrugada.

Com a menopausa ganhamos alguns quilos. Demoramos para perceber e comentar entre nós sobre o assunto. Era mais um problema a nos afligir.

Não fomos mais à Itália, simplesmente, perdemos o desejo de estar em sintonia com outras pessoas.

Numa tarde de verão, de sol escaldante, não consegui tosquiar as ovelhas, passei mal. Minha visão escureceu e suei frio. Nesse dia percebi que não tínhamos mais condições de possui-las, então decidi vende-las. Nosso vizinho ficou com elas.

Mamãe, antes de morrer, havia comprado uma tevê enorme, a maior que encontrou na loja, em preto e branco, é claro. As coloridas vieram bem mais tarde.

Nossos dias eram cada vez mais pacatos.

À noite víamos um pouco de televisão e cada uma ia para seu quarto.

A terceira idade nos trouxe muitas dores e aflições, devido a solidão.

O casarão também se tornou grande em excesso para nós duas. Não conseguíamos mais mantê-lo organizado e limpo.

Arrumamos uma jovem para cuidar dos afazeres e da nossa alimentação.

Era perto do Natal quando recebemos um telefonema do primo Lorenzo, dizendo que viria passar as festas de fim de ano com a gente. Era a primeira vez que ele vinha ao Brasil.

Pedimos ao motorista que fosse busca-lo no aeroporto.

Nosso motorista foi contratado por mamãe. Em casa só papai dirigia, nunca permitiu que a gente pegasse no volante, dizia ele, que não era coisa para mulher.

Antônio, além de motorista, trabalhava na fabricação de vinhos. Quero dizer ele tinha mais de uma atividade com a gente.

Maria preparou o almoço. Sentamos os quatro para a degustação.

Chiara, muito alegre, falava sem parar, nem percebeu que Sara vivia numa tristeza de dar dó. Quem tocou no assunto foi Lorenzo, mas, Sara, sem nenhum ânimo, pediu licença e foi para o quarto. Continuamos os três à mesa. Desfiei nossa situação aos primos. Lorenzo e Chiara não sabiam o que fazer.

Depois do desabafo. Fui ao banheiro, enxuguei o rosto e continuei a falar da nossa angústia.

Maria, silenciosa, lavando a louça na pia da cozinha. Pedi a ela que trouxesse um pouco mais de vinho. Ela nos serviu com um semblante de piedade.

Depois do almoço fui mostrar a eles a adega. Estava abarrotada. Segundo meus arrendatários a safra embarcaria no outro dia.

Meus primos estavam eufóricos com tudo que viram no caminho da cidade até a Fazenda Vinhedo D’ouro. Era esse o nome que nosso pai dera à sua propriedade assim que chegou ao Brasil.

Passamos a tarde conversando e bebericando uma taça de vinho que tão logo esvaziávamos, Maria enchia de novo. Bastante alegres, tratamos de ir para os nossos quartos dormir um pouco.

Com a chegada dos primos, Sara animou-se.

No fim de semana fomos dar umas voltas nos arredores da cidade. O primo dirigia, não precisou que incomodássemos Antônio.

Passamos o dia fora de casa. Lorenzo, muito animado, nos deixou bem à vontade, enquanto eu ia bancando a cicerone. Visitamos todos os pontos turísticos de Taborda e de São José. Os dois ficaram encantados com as praias, a ponte e os animais do horto florestal.

No outro dia, subiríamos a serra, mesmo não sendo inverno, era um grande atrativo aos nossos visitantes.

No dia do embarque Lorenzo e Chiara recomendou-nos que fôssemos morar na cidade. Não era bom que duas mulheres em idade avançada ficassem isoladas, apesar de que o fato de vivermos tão só, era culpa exclusivamente nossa. Fomos nós que não saímos mais de casa, deixamos de visitar os vizinhos, entre outras coisas. A idade nos deixando com a saúde mais fragilizada e o desejo de estar aqui e ali se condicionando em querer ficar só. Ainda que a solidão doesse e a gente não concordasse com ela, a disposição foi desaparecendo aos poucos.

Mesmo depois de mamãe ter partido, a gente ainda frequentava as festas, para as quais, éramos convidadas. Nós e a turma da lida participava dos concursos de vinho, assim como, íamos à “octoberfest”, mas, chegou um tempo que abandonamos todas essas coisas, deixando-as nas mãos dos arrendatários.

Depois que os primos foram embora, Sara se isolou mais. Havia dias que nem descia do quarto.

Nossa casa tinha o pé direito bem alto e os quartos ficavam no mezanino, mas, no piso inferior haviam dois quartos. Passamos a ocupá-los para não ter que subir as escadas.

Era Maria que dormia num dos quartos de cima. O que era de mamãe e o de Olívia ficaram desocupados, porém arrumados da mesma forma de quando eram vivas.

Tínhamos uma casa na cidade, que vivia, ora fechada, ora alugada, desde que mamãe faleceu.

Certo dia, convidei Sara para que nós duas fôssemos morar lá. Quem sabe assim, poderíamos ter com quem conversar mais de perto e Maria prontamente, disse que nos faria companhia. Falei, mas, Sara não me deu resposta, disse que ia pensar. Argumentou ainda, que talvez, não fosse de gosto dos nossos pais que deixássemos o que era deles, totalmente na mão de estranhos. Encerramos o assunto. Ficamos de olho no noticiário da tevê.

O noticiário falava sobre as eleições do ano de 1970. Era presidente do Brasil o General Emílio Garrastazu Médici.

Médici governou de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, foi um dos que participou de Revolução de 1930 liderada por Getúlio.

Nas eleições ocorridas durante seu governo, a ARENA era o partido de sustentação da ditadura militar. O MDB era o partido de esquerda da época, que abrigava os opositores do regime militar. Nesse ano a ARENA ganhou na maioria dos estados da federação. Lembrando ainda, que nessa época, a dívida externa já se fazia grandiosíssima e a cada ano crescia mais.

Nesse tempo as mulheres nada entendiam sobre política, portanto, o assunto nos era bastante alheio, embora eu tivesse muita curiosidade em saber porquê nosso pai ditava as regras e dizia em quem deveríamos votar. Depois de sua morte, não foi diferente, seus aliados políticos vinham nos ordenar a quem daríamos nosso voto. Essa coisa me deixava muito intrigada, mas, para uma mulher como eu, que mal havia namorado determinado rapaz e que nem me casei, porque não era ao gosto de mamãe, minhas irmãs do mesmo jeito e nesse tipo de conversa, onde os homens é que davam o veredicto, não se tinha mesmo o que discutir, principalmente agora, discutir com quem e com que argumentos?

Maria e eu fomos à cidade ver o estado em que a casa estava para mudarmos.

Fizemos alguns retoques e pintura e em pouco mais de um mês mudamos.

As economias que possuíamos dava para alguns anos, sem precisar vender as terras. Para nós, mudar de casa foi algo bastante interessante. Passamos a frequentar os cultos na igreja duas vezes por semana e Sara deu uma boa arribada.

Maria era nossa companheira para todas as horas e motivos. Gostávamos muito dela, contudo, ela era uma moça ainda em idade para casar e logo arrumou um namorado que frequentava nossa casa e servia-nos como se fosse um irmão mais novo.

O namoro durou alguns meses. No início do ano, mais precisamente no mês de fevereiro, Maria se casou. Ela era uma moça criada por uma família que morava nas terras de papai. Foi doada quando bebê, porque sua mãe morreu no parto. Ela nunca soube nada sobre o pai. Ele trabalhava na cozinha do navio e viajava muito e não se soube que fim levou.

Fizemos o casamento de Maria como se ela fosse nossa filha, com direito a vestido de noiva e festa.

Nesse dia, ficamos muito emocionadas. Sara chorou copiosamente, quando a viu entrar na igreja. Não sei se era de ressentimento por não ter casado, ou, porque íamos perdê-la para sempre. Quanto a mim, vou confessar, morri de inveja dela.

Vi-me sendo ela e casando com o homem da minha vida. O mesmo que mamãe deu um jeitinho para que a gente se distanciasse e ele fosse embora horrorizado com o seu comportamento agressivo e humilhante, quando aparecia em casa.

Senti uma dor muito profunda no peito. Acho que o amor sempre esteve aqui, dormente para nunca mais acordar. Era deveras, uma dor cruciante, mas, não chorei, sempre fui durona.

Maria estava radiante. Depois da festa rumou para a casa que compramos para ela. Afinal, era como se fosse nossa filha.

Depois do casamento ela não nos desprezou. Toda semana ia com o marido ver como a gente estava. Era uma pessoa cheia de gratidão e teve a sorte de achar um homem bom, amoroso e que além de cuidar dela, passou a cuidar de nós também.

Continuávamos a tricotar e bordar coisinhas que nos encomendavam e cuidar da casa. Nos fins de semana, esperávamos Maria com alegria.

Íamos juntos, os quatro à igreja. Sentíamos como se a família estivesse restaurada.

Quando Maria teve o primeiro bebê, Sara e eu fizemos questão de bordar o enxoval e nos sentíamos avós de verdade. Nossa vida pareceu até importante. Nem parecia que havíamos deixado os setenta anos para trás. Realmente nasceu em nós a alegria de viver. Ficamos realizadas com o casamento de Maria.

Tudo corria maravilhosamente bem, até o dia que Sara acometida de uma horrível dor foi parar no hospital. Eu não sabia o que fazer, mas o marido de Maria veio nos acudir. Foram feitos muitos exames e nada de descobrir a enfermidade. Sua obesidade desapareceu em poucos dias. Emagreceu demais. Virou um palito. Mal podia andar.

Quando os médicos atinaram sobre sua enfermidade, já não tinha mais jeito. Pensei em leva-la para fora do país, como mamãe fez com papai, mas, os médicos disseram que não ia adiantar. Não havia mesmo o que fazer. Apeguei-com Deus e dizia que se fosse da sua vontade ela ia ficar curada.

Cuidamos de Sara até o dia em que partiu. Maria e o marido sempre me ajudando. Os médicos fazendo o que podiam. Gastamos todas as economias, mas, ela se foi.

Entre as idas e vindas do hospital, acho que foram bem mais de dez. Minha irmã teve todos os cuidados e carinho. Fez sua partida serenamente, sem agonia.

Depois do sepultamento, Maria e o marido foram comigo e ficaram naquela noite. Aliás, o enterro foi pela manhã, passaram o dia e dormiram na minha casa. Eu estava muito abatida, não tinha condições de ficar só.

Não pudemos nos queixar, Maria foi a filha que não tivemos, mas, que cuidou de nós até o fim.

Depois que Sara partiu, sabia que eu também a qualquer hora partiria, contudo não estava só, havia Maria na minha vida e era para ela que ia deixar os bens que herdamos.

No outro dia, chamei o advogado e lavramos o testamento.

Todo durão chega uma hora que derrete. Era minha minha vez de chorar e pôr para fora, todo o vazio que existia em mim.

A chuva continuava miúda e insistente.

O fato de ter insônia, passar quase a noite inteira tricotando, vendo tevê, ou embebida nesses remotos pensamentos, não são nada desconhecidos de mim, assim como os rumores que ouço na escada.

Apuro os ouvidos e os passos continuam misturados ao barulho da chuva no vidro da janela, chegando à porta do quarto, para. Pergunto quem é. Sem resposta. Um cheiro de rosas invade o ambiente. Sei que em breve também viajarei. Pressinto e espero minha hora com tranquilidade.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 11/10/2020
Reeditado em 02/05/2023
Código do texto: T7085140
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