DIAS VERMELHOS

Os dias eram vermelhos no morro. Toda dor que havia naquele lugar, todo pavor que eu via nos olhos daquela comunidade, faziam tremer até minha alma. Mal entendia por que tinha ido parar no meio daquele povo cheio de medo, mas, também cheio de esperança. Não podia desejar ir embora, tinha que abraçar a causa, era minha missão.

Comecei tudo timidamente.

Levantava cedo, pedia proteção divina e ia à luta. Primeiro passava no chafariz, onde todos pegavam água quando era verão. No morro faltava água potável. O mandante do morro fechava o medidor quase por completo, deixando a água tão pouca, que levava vários minutos para encher um balde, diferente disso, era porque ela faltava, deveras. Por causa disso, é que os moradores iam ao chafariz.

Quando digo que tinham esperança era porque tinham mesmo. Eu via isso no riso de cada um, quando lhes cumprimentava na paz do nosso Deus.

Era mês de janeiro quando cheguei nessas paragens. O templo ficava no lugar mais alto. Dali eu podia ver todo o movimento. E o que via me causava horror.

No primeiro culto que promovi, a igreja ficou cheia. Era a primeira casa edificada, para que as pessoas pudessem levar ao pai sua mensagem de amor, gratidão pela vida e seus pedidos em oração.

No meio do culto, assim que proferi a palavra do evangelho, uma menina subiu ao púlpito e me disse baixinho:

- Aquele senhor sentado no primeiro banco que está vestindo uma camisa vermelha e o cara que manda aqui na comunidade.

Assenti com a cabeça e ela voltou para junto da mãe.

Até o momento, eu estava tranquilo, mas, dali em diante, fiquei observando o homem que já estava de olho em mim, há mais de meia hora e então, medindo cada palavra, de forma que não tocasse na ferida dele.

Cada rosto que ali estava, procurava pela mesma coisa. Um alento em Deus. Um pouco de alegria. A homilia tinha que tocar o coração e levar a todos eles o que estavam precisando, sem desagradar o sujeito de camisa vermelha.

Só Deus sabia como estava meu espírito naquele momento. Precisava acertar e para não ter erro, não podia titubear.

Entendi a necessidade de ser mais inteligente que ele e ganhar sua confiança.

Iniciei a pregação, pedindo que a Santíssima Trindade me iluminasse. Trouxe o texto bíblico para a realidade do morro e falei com sentimento, sobre amor, perdão e salvação.

Queria que Jesus tocasse o coração daquele homem de cara amarrada, de barba e cabelos há muito tempo longe do cabeleireiro. Em seu pescoço desfilava nada menos que meia dúzia de colares dourados e pingentes cravejados de diamantes.

Volta e meia, passava os olhos, disfarçadamente pelo banco onde ele estava sentado e sentia que o camarada não era do bem. Foi a igreja, apenas para me controlar. Tinha que dar um jeito de me aproximar dele.

Quando o culto terminou e todos foram saindo, ao invés de ser eu a me aproximar dele, foi ele que veio falar comigo.

Cumprimentou-me e disse que gostou muito das minhas palavras, mas, que não me atrevesse a falar coisas, às quais, ele não aprovava, que em três tempos ele mandava minha igreja para os ares. Olhei para ele com a tranquilidade que não vinha de mim, descia dos céus. Por dentro, eu tremia, mas, não podia deixar transparecer que eu estava com medo.

Era meio dia. Nesse dia, nem lembrei de almoçar. Fiquei tão amedrontado com o recado que me foi dado, olho no olho, que esqueci completamente. Passei o dia na igreja. Arrumei algumas coisas. Estudei a palavra. Precisava aprender mais e mais. Não podia sair daquele lugar derrotado, ou, morto. Isso jamais!

No alto do morro, havia um para peito feito de concreto, penso que era escondido atrás dele que os bandidos enfrentavam a polícia. Olhei para baixo e vi muitas cascas de cartucho agarradas nos vãos das pedras.

Fiquei pensando no porquê a vida humana tem que ser transformada assim: o homem eliminando a si mesmo. O que for mais forte, mais inteligente, ou, melhor preparado, vence. Nesse pensamento, sai andando, no rumo de casa.

Tomei um banho e desci o morro de bicicleta. Era o único transporte que tinha. Uma bicicleta velha, antiga e surrada. Era com ela que fazia as visitas que fossem mais distante do templo.

Nessa tarde, resolvi ir ao calçadão. Precisava pensar e relaxar.

Encostei a magrela numa árvore próxima a praia e passei o cadeado.

Tirei as sandálias e fui andando descalço pela areia molhada.

A areia fria, em contato com os pés, deixava-me mais tranquilo. O vento que vinha do mar tinha gosto de sal e vi que era bom. Atiçava meus cabelos e salgava minha pele. Andei bastante, aproveitando o gosto da maresia.

Há tempos, não fazia uma boa caminhada.

Na volta, vim reparando meu rastro na areia, quase desfeito pelas ondas. Assim como a vida, que num instante vira nada. O sopro que nos alimenta a alma, vai-se com ela e só fica a carne fétida e podre.

O sol acabava de se pôr no horizonte. Ainda não tinha reparado como era lindo e emocionante vê-lo esconder-se entre o céu e o mar. Era mesmo maravilhoso! Parei e fiquei olhando, até que ele desaparecesse totalmente.

Peguei a bicicleta e retornei em casa.

Quando virei a esquina, vi minha casa em labaredas. Queimaram tudo, como alerta de que não estavam brincando. Eu tinha que pôr "as barbas de molho".

Naquela noite, dormi na igreja. Aliás, passei a noite. Madornava. Levantava para ver se via algo suspeito. Estava acuado. A voz do dono do morro e a sua cara de senhor da ordem, não saíam da minha mente.

No outro dia, logo cedo, fui ao chafariz. Não havia ninguém. Sinal de que tinha água nas torneiras das casas.

Resolvi andar pelo bairro, o dia estava bem agradável.

Em certo momento, percebi que estava sendo vigiado.

Tive um sobressalto, mas, me contive e continuei andando. Visitei várias casas de família e os convidei para o culto que faria no sábado vindouro.

Sobre o crime do incêndio contra minha moradia, resolvi ficar em silêncio, pelo menos, naquele momento. Era melhor para minha segurança.

No sábado, a igreja lotou. Os bancos rústicos foram poucos para as muitas criaturas de Deus que vieram escutar sua palavra. O culto foi bonito. Algumas crianças vieram a frente mostrar seu louvor. Uma moça se ofereceu para fazer reuniões com as mulheres nas quartas-feiras, no fim da tarde. Ela estava desempregada. Enfim, fiquei satisfeito com o resultado da obra.

Nesse sábado, almocei em casa de um dos irmãos que me convidou. Ele morava quase ao lado do templo. Depois do almoço, voltei à igreja para preparar-me para o culto do domingo, quando fui surpreendido por alguns sujeitos armados que me amordaçaram e me levaram com eles.

O pavor tomou conta de mim. Sem saber para onde estavam me levando, clamei aos céus em pensamento. Tinha certeza de que iam me matar. Jogaram-me num lugar frio, úmido e mau cheiroso.

Por algumas horas, fiquei ali e o silêncio era total. Apurando os ouvidos percebi que podia escutar o barulho da rua, carros, motos e conversas. Depois o sujeito que estava na igreja chegou. Retirou o capuz da minha cabeça, o esparadrapo da minha boca e me disse para levantar. Quando levantei ele me deu um soco no estômago que cai sem ação. Depois, me chutou várias vezes e disse que eu estava avisado – se atrapalhasse a vida dele qualquer tantinho que fosse, era um homem morto.

Saiu com seu trabuco nas costas, sem se dar ao trabalho de olhar como eu estava. Esperei um pouco. Depois, fui embora.

No banheiro do templo, tomei um banho e fui à farmácia comprar um analgésico. Tomei o remédio, porque meu corpo inteiro doía. Deitei na cama e pus-me a interrogar-me: - Qual seria a melhora solução?

Devido a medicação que ingeri, peguei logo no sono. Acordei em noite alta, suado e respirava ofegante por causa do mau sonho que tive.

No outro dia, estava cheio de olheiras e mancava da perna direita. Acho que destendeu o músculo da coxa com os chutes que levei.

O templo ficou cheio de novo e por um momento esqueci que tinha apanhado e que devia me lembrar disso, para medir cada vocábulo que eu fosse dizer. Fiz um sermão de mais de quarenta minutos. A igreja inteira glorificou a Deus. Muitas pessoas oraram e eu também finalizei com minha oração.

Era por volta das dezoito horas. Começava a escurecer quando ouvi um tiro. Alguns jovens andavam por ali. Todos correram para suas casas. Em seguida, escutei a sirene da polícia e vários pipocos. Um dos tiros atravessou a parede do templo a caiu no piso. Escutei o tinido do estanho.

Procurei me proteger.

Foram tantos tiros que não dei conta de contar.

A polícia tomou o morro e levou muitos homens e mulheres presos e outros ficaram caídos na rua. O corpo de bombeiros foi chegando e as ambulâncias também. Recolheram os vivos e levaram aos hospitais.

Eram dez horas da noite. Cinco corpos estendidos, sem vida, na rua, em frente à igreja.

O sangue escorria sobre o asfalto e descia pelas valas do morro.

Nessa noite, ninguém dormiu.

As mães que tinham filhos, ou, filhas, envolvidos com o tráfico, choravam muito. O desespero tomou conta delas. Eu tentava acalmá-las, mas, o que dizer a uma mãe que perdeu o filho? Não tinha o que dizer. Minha voz estava embargada, pelo medo e pela tragédia ocorrida.

Depois da meia noite, tudo virou calmaria.

A luz do morro foi apagada. Até isso era controlado pelos donos do tráfico.

Pela manhã, tudo muito triste. O chafariz vazio. Nenhuma criança veio soltar pipa.

Por alguns minutos, fiquei parado na porta do templo, pensando...

Depois, chegaram três carros de funerária. Seis mortos. Onze ao todo. Fui ver. Um deles era o sujeito que me bateu. Não suportou os ferimentos e morreu no hospital.

Durante os anos que ali vivi, vi e senti a dor das famílias pobres que não conseguiam um lugar onde a paz pudesse existir. Fui testemunha ocular de crimes hediondos.

Trouxe para o serviço de Deus, alguns jovens, que por pouco,não se perderam, contudo, tantos outros, eu não pude evitar. A droga adotou-os sem piedade. Fraquejei, com certeza. Fui incapaz e isso dói até hoje.

Até pensei que as coisas por ali podiam se modificar, mas, depois de algum tempo, percebi que não. Quando morre um chefe, logo, outro toma seu lugar.

Vivi naquela comunidade por cinco anos e vi muito sangue derramado. Sangue de gente inocente, mas, também, de gente envolvida com o crime organizado.

Aprendi que o que eu não podia fazer, ou, modificar para melhor, tinha que deixar nas mãos de Deus.

Conversava de maneira franca com os pais das crianças e dos adolescentes. Tinha que fazer isso, porque eles trabalhavam muito e deixavam, muitas vezes, os filhos à vontade demais. Tudo tinha que ter limites, dizia assim, a eles.

Reunia com os jovens e falava com pessoas influentes para que eles pudessem ter o primeiro emprego. Dessa forma, muitos puderam se salvar.

Lutei com todas as forças nessa missão de paz, de amor e de sobrevivência. Naquele lugar, cada qual, tinha que cuidar de se proteger e de proteger sua família.

O novo chefe era pior que o anterior, nem aviso dava. Quando cismava com algo, ou, via o que não apreciava, matava sem nenhuma piedade e com requintes de crueldade.

Com a ajuda de autoridades e da igreja, pude iniciar aulas de canto e instrumentos para as crianças e jovens, principalmente, as que se sobressaiam nos cânticos e na igreja.

Se os dias, até então, eram vermelhos, passaram a ser sangrentos. A violência se multiplicava a cada dia.

Todas as manhãs, alguém aparecia sem vida, em algum lugar, ou, desaparecia sem deixar vestígio.

A polícia também, andava por lá, quase todos os dias, e nesse andar, deixava seu rastro de sangue.

Muitos inocentes pagavam com a vida, quando o tiroteio se dava sem que houvesse segurança para as famílias que ali viviam.

Em certa tarde, o céu estava nublado, grossas nuvens no céu e o vento gemia como se adivinhasse o que estava por acontecer.

O dia já havia começado triste. O sol escondido entre o nevoeiro. As mulheres tentando lavar as roupas com a água do chafariz. Já fazia dois dias que as torneiras estavam secas. Eu não entendia porque no chafariz a água jorrava em abundância e nas torneiras não saia nada. Claro que eu sabia que o chefe fechava o medidor, mas, ninguém podia questionar. Todos, no morro, viviam calados. Mal escurecia e não se via mais nenhuma porta, ou, janela aberta.

O tiroteio começou por voltas das quinze horas. Foram tantos tiros, que mais parecia uma praça de guerra. Mesmo com o coração aos pulos, fui recolhendo os que vinham correndo do chafariz e passavam pela porta da igreja.

Mandava que todos ficassem deitados no chão. Rogava ao nosso Deus que não deixasse que nenhum deles fosse atingido.

À medida que o tempo passava, tomei por aquelas pessoas um sentimento de pai. Queria protegê-las a todo custo, contudo, nem sempre, saía no lucro.

Nesse dia, foi um rio de sangue. Sentia que até a lua chorava nos braços da estátua do Cristo Redentor, no alto do Corcovado.

Mães, filhos, pais, crianças e adolescentes perderam a vida. Foram mais de meia hora de balas cruzadas.

Quando cessou, o silêncio era mortal, exceto, o barulho das ambulâncias e Corpo de Bombeiro transportando mortos e feridos.

O choro e o soluço abafado pela dor e pelo medo reinavam no morro, enquanto o sangue de seus filhos escorria ladeira abaixo.

Uma das balas atingiu meu fêmur esquerdo, e a outra a minha cabeça, no instante em que retirava nos braços uma moça que também foi atingida e caíndo na porta do templo.

Fui dos últimos a ser socorrido, porque consegui entrar e fechar a porta, mas, em seguida perdi os sentidos. Não sei como me descobriram, e levaram-me ao hospital. A moça perdeu a vida.

De vez em quando, ouvia muito longe, a voz de alguém que dizia:

- Ele está muito mal, precisa ser levado ao centro cirúrgico o quanto antes, se não, vamos perde-lo.

Entrei por um grande túnel. Acho que era o da morte. Primeiro muito escuro, depois cheio de névoa. Uma força estranha me levava sempre para frente, mas, eu não queria ir. Meu desejo era voltar. Fazia um esforço medonho para não ir, mas, acabava indo.

Entre a névoa, podia ver que o lugar era tranquilo, eu não sentia mais dor. Havia um lindo jardim cheio de flores e borboletas coloridas passeavam sobre ele. Muitos passarinhos cantando. Sentia um frescor e um alívio gostoso na minha pele. Meu corpo flutuava e me sentia leve como uma pluma. Estava em paz. Entretanto, queria retornar. Então, vi meu corpo sobre a maca. Várias pessoas, homens e mulheres vestidos de verde cuidavam de mim, porém, estavam apreensivas. Ficava assustado vendo meu próprio corpo. Tive vontade de chorar. Então, chorei copiosamente. Alguém chegou, pôs a mão no meu ombro e me acariciou, depois, me abraçou. Era um anjo prateado. Ele me pedia para ter calma, e, eu chorando lhe disse que queria de novo meu corpo, ele, carinhosamente, falou que eu ia tê-lo outra vez, só bastava ter fé.

No outro dia cedo, percebi que estava num lugar de pouca luz e o anjo ainda estava ali. Sentando aos pés da cama me velando. Queria falar com ele, mas, não dei conta. Fiquei admirado que ele adivinhou e veio pertinho do meu rosto, perguntar o que eu queria e ficou passando os dedos pela minha fronte. Em seguida veio uma pessoa vestida de branco. Não consegui saber quem era, mas, assim que ela se afastou eu me senti melhor.

Senti que estava respirando e pensei: - Estou vivo, louvado seja meu Deus! Depois voltei a dormir.

Não sei por quanto tempo, mas, ao acordar, o anjo estava sentado no mesmo lugar. Olhei para ele e ele sorriu. Outra vez, glorifiquei o meu bom Deus.

Nessa hora, alguém veio e trocou o soro com medicamentos que estavam em mim, colocando outros.

Não sei quanto tempo passou, mas, quando acordei de novo, pude ver que estava no quarto.

Era de manhã, bem cedo.

Procurei o anjo e ele tinha ido embora.

Depois, chegou a enfermeira e perguntou como eu estava, fez a medicação e me banhou com panos umedecidos com água morna.

Antes do meio dia, o bispo, meu superior, apareceu. Olhou-me com muita tristeza e depois orou por mim.

Antes de sair, falou qualquer coisa que não entendi direito e se foi.

Quando o médico me deu alta, ele veio me buscar e me mandou para a casa de meus pais.

Em casa dos meus pais, minha irmã cuidava de mim, porque estava sem poder andar.

Não tinha mais som na minha voz, apenas, sussurrava. Perdi também os movimentos dos membros inferiores. Segundo a equipe médica que me avaliou na última vez, ficaria assim, por algum tempo. Estava fazendo fisioterapia. Um amigo vinha na minha casa me atender todos os dias. Sentia muita dor durante os exercícios, mas, era preciso para que eu pudesse andar novamente. A lesão no cérebro atingiu a parte que tratava dos movimentos das pernas e do som que sai das cordas vocais. A primeira era reversível, enquanto que a segunda não tinha remédio, a não ser que um dia, bem próximo, aconteça um milagre e minha voz seja restabelecida.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 02/12/2020
Reeditado em 21/08/2021
Código do texto: T7125887
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