Cotidianos XVII – O Coração Negro 

No amplo salão parcamente iluminado de um armazém abandonado, vários jovens movimentavam-se com frenesi, arrumando cadeiras e mesas, pregando bandeiras e símbolos diversos na parede frontal; carregando grades e caixas de cervejas para depositarem-nas dentro de freezers espalhados pelas laterais do edifício.

No centro do armazém, um homem de meia-idade comandava tudo com a energia de um Sargento.

-Você aí, em cima da escada! Ajeita o lado direito dessa bandeira... Sobe mais um pouco que ela está torta! E você aí, cara, nessa outra escada... Presta atenção, rapaz! Esse símbolo está de cabeça para baixo... O machado fica para o lado de cima, tonto!

O homem de meia-idade, com o cabelo cortado ao estilo militar com topete escovinha, trazia tatuado no braço direito, uma suástica vermelha; no braço esquerdo, a letra grega sigma, e no pescoço, por cima do pomo-de-adão, a tatuagem mostrava a imagem de um feixe de varas envolvendo um machado, sendo o conjunto, envolvido por uma corda em espiral. O homem era sisudo e impunha um respeito reverente aos seus comandados.

Do meio do armazém, postado sobre uma lona verde, cujo área central era adornada com uma águia negra de asas abertas, o homem de meia-idade continuava dando ordens:

-Jaelson, onde está a suástica para colocar entre as duas bandeiras? Vamos botar pressa nessa ação! Falta pouco menos de uma hora para começar a cerimônia, e nossos irmãos estão todos reunidos do lado de fora. Daqui a pouco o Grão Mestre vai chegar, e vocês ainda estão pisando nos ovos para terminar tudo. A polícia está sempre rondando, à espera de qualquer bobeira nossa.

Depois de gritos, xingamentos e até ameaças, seguidas de um ou outro safanão nos mais lerdos, finalmente, o palco principal estava pronto para a abertura cerimonial.

Quem assistisse de longe a azáfama na preparação da cerimônia iminente, diria que o término dos preparativos e a organização tinham sidos escrupulosamente cronometrados com a entrada no recinto, do Grão Mestre e seus acólitos.
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O Grão Mestre, um homem de ascendência nórdica, cujos cabelos loiríssimos, caiam em cascata pelos ombros, girou os olhos azuis turquesas pelo recinto e sorriu com satisfação. Bóris, como sempre, embora filho de pai russo, tinha a eficiência germânica na mãe no sangue. O picadeiro para a cerimônia estava impecável. Caminhou resoluto para o local da cerimônia seguido por dezenas de acólitos que, juntos com o ele, esperaram do lado de fora pela conclusão dos preparativos para o ato cerimonial da noite.

Postado no púlpito, o Grão Mestre pigarreou e com um leve toque de mão, ajustou o microfone, direcionando-o para o seu rosto. A plateia, disciplinarmente sentada e em silêncio absoluto, aguardou impassível, o Grão Mestre retirar do bolso interno do paletó o improviso.

Quando o Grão Mestre ajustou os óculos para iniciar a leitura, o silêncio sepulcral foi rompido pela estridência do toque de um celular advindo detrás das cortinas de veludo rubro. O Grão Mestre e acólitos concentraram suas atenções para a espessa cortina, tentando adivinhar quem era o inepto que não desligara e nem silenciara o maldito aparelho. Passados intermináveis segundos, o secretário do Grão Mestre entrou correndo pelo tablado com um celular à mão. Em frente ao seu Mestre, curvou-se e entregou o aparelho. Todos assistiam estupefatos, a insólita cena. Ninguém se movia nas cadeiras à espera do desfecho.

O Grão Mestre pegou o celular, e enquanto ouvia, assentia várias vezes com a cabeça. Após devolver o aparelho para o Secretário, saiu andando apressado, quase correndo por uma porta lateral oculta pelas cortinas. O secretário caminhou para o púlpito, pegou o microfone e gaguejou:

-O Mestre determinou que eu, em seu nome, pedisse escusas pelo imprevisto da saída tempestiva. É que a ligação que ele recebeu, era do hospital onde o Adolf está internado. Ele foi informado que encontraram um doador compatível com a idade, peso e tipagem sanguinea do Adolf, e neste momento, o herdeiro está sendo levado para a Sala de Cirurgia.

Ao ouvir a alvissareira notícia, a plateia irrompeu em vivas, aplausos e assobios.

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O garoto Adolf, além de admirador incondicional do pai, até os quinze anos era um atleta excepcional. Na sua categoria, era recordista em salto em altura e distância. Nos cem metros, estava bem ranqueado e todos apostavam que em breve seria um excelente atleta olímpico. Até que um certo dia, durante um treino matinal, ele sentiu uma forte dor no peito e desmaiou. Levado às pressas para o hospital, foi diagnosticado com Insuficiência Cardíaca, uma perigosa doença progressiva. Depois de demorados e caríssimos tratamentos com os melhores especialista do Brasil e até do exterior, os médicos informaram aos pais que a única chance do filho, era um transplante.

De posse de todos os testes clínicos e uma pilha de exames laboratoriais, os pais o inscreveram no Sistema Estadual de Transplantes, ou simplesmente, Central de Transplantes.

Depois de angustiante espera e driblando morte graças a sofisticados aparelhos, finalmente, e graças ao estado crítico de sua saúde, aos dezessete anos, chegara a vez de Adolf.

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Naquela manhã, dia dos Exames do ENEM, desgraçadamente ele acordou tarde. Sem escovar os dentes, jogou rapidamente uma água na cara, vestiu uma calça jeans e a primeira camiseta que encontrou. Sem tempo para calçar os tênis, calçou a sandália havaiana, jogou a mochila nas costas, montou na bicicleta, deu um grito de despedida para a mãe e saiu em disparada pela rua do bairro em direção ao Colégio onde seriam aplicadas as provas.

Enquanto pedalava furiosamente a “magrela”, ia pensando no que o Professor voluntário do bairro tinha falado:

Atenção, garotada! No dia e na noite que precede os exames, façam qualquer coisa para se distraírem... Leiam, joguem, durmam, dancem, fiquem de papo para o ar... Só não estudem! O que vocês tinham que aprender, já aprenderam... Descansem!

Mas não! Na noite anterior ele resolvera estudar trigonometria, seu fraco! Logo pegou o jeito da “coisa” e se entusiasmou... Quando deu por si, já era quatro da madrugada e nada de sono! Tomou leite morno... Contou carneirinhos... Depois, não sabia como, adormeceu e acordou daquele jeito... Atrasadíssimo!

Pedalando furiosamente e mergulhado em seus pensamentos, não viu um carro que atravessou o sinal e o pegou em cheio. Ele foi jogado no outro lado da rua e ficou lá, parecendo um boneco desarticulado. Sangrando pelo nariz e ouvido. O motorista, evidentemente fugiu.

No Hospital de Trauma, a Equipe Médica que o atendeu constatou morte encefálica. Uma enfermeira piedosa pegou o celular do paciente em óbito, que por arte do destino, não possuía senha, e consultou a agenda.

O nome em destaque nos contatos era: “Mãe”. A enfermeira soltou um soluço involuntário e chamou o número. Do outro lado da linha, um grito angustiado juntou-se às lágrimas que escoriam dos olhos da enfermeira.

Momentos depois, uma funcionária conduziu uma mulher idosa com um lenço amarrado na cabeça até a sala do Chefe da Equipe Médica. O tecido estampado na cabeça da mulher, escondia parcialmente a carapinha pontilhada de fios esbranquiçados. A pele negra da testa da velha senhora, estava porejada de suor frio. Os olhos vermelhos, abriam e fechavam ao ritmo dos soluços do choro contido.

O Doutor Moisés, acompanhado de um pequeno grupo, gentilmente ofereceu água e um comprimido para a abalada mulher. Depois que a velha senhora se acalmou um pouco, um dos membros do Grupo, um neurocirurgião, explicou a situação clínica do paciente, seu filho. Após as respostas entrecortadas de choros contidos às perguntas do médico. Outro membro do Grupo, um psicólogo, conversou longamente com ela.

Na saída da sala, a enfermeira que havia telefonado, colocou os braços solidariamente sobre seus ombros e a conduziu para a enfermaria. No caminho, a velha senhora comentou soluçando:

-O meu neto sempre foi um garoto generoso. Era capaz de ficar sem camisa para dar aos necessitados – soluçou e fungou o nariz -, por isso foi que eu aceitei que cortassem o coitadinho para dar os órgãos dele para os outros...

-Neto? Estranhou a enfermeira.

-Neto, sim! A mãe dele, minha filha, morreu no parto. Criei ele desde bebezinho. Nunca me chamou de Avó, sempre me chamou de Mãe!

- o –

A Equipe de Transplante enfrentava um dilema, levantado pelo psicólogo:

-Vocês sabem quem são os pais do paciente receptor, não sabem?

O neurocirurgião respondeu por todos.

-Sei! Um supremacista filho-da-puta. Responde a vários processos na justiça por agressão a negros, judeus e homossexuais...

-E vocês acham que ele vai aceitar o órgão do paciente doador? Perguntou o Cirurgião Cardiologista.

-Vai, sim! Se mantermos, como de costume, o sigilo da identidade do doador... Afinal, o nosso trabalho consiste, sempre que podemos, em salvar vidas... O resto? Oras, é resto... E ponto final!

Arigó
João Pessoa-PB, Dez/2020