Ele era meu Capataz

Essa história foi contada por um amigo, antigo morador (quase pioneiro) de uma pequena cidade no interior do Estado de Rondônia.

Segundo ele, o causo de passou assim:

Zezão do Boi, natural da região do Seridó Paraibano e que era um burro da carga para o trabalho; na casa dos vinte e cinco ou trinta anos, chegou em Vila Nova na década de 1980 fugindo da seca, da miséria e da fome que grassava naquele sertão. Trazia apenas a roupa do corpo e um saco de estopa com os cacarecos da vida sobre as costas, que ele dizia ser a sua mala e que o cadeado era o nó. Trazia também, muita coragem, disposição para o trabalho e um pedaço de papel que ele tinha recebido na Sede do INCRA, lá capital, Porto Velho.

Sem recursos para pagar a hospedagem numa pensão, atou a rede furada debaixo de uns pés de manga e com os poucos caraminguás que trazia no bolso comprou bananas, farinha e almoçou como se fosse um rei. Depois, descansou a carcaça do corpo magro por um dia, e no outro, de posse do tal papel, foi ao Banco do Brasil na vizinha cidade de Guajará-Mirim. Após horas de chá-de-cadeira, foi chamado para a mesa de um funcionário. Arredio, entregou o papel recebido do INCRA e os documentos. O escriturário depois de exame minucioso, concluiu que o Título Provisório de Posse, o RG e o CPF estavam corretos e autênticos. Em seguida abriu uma conta corrente, preparou um contrato de empréstimo e deu tudo para o Zézão do Boi assinar.

Horas depois, Zézão saiu da agência bancária com crédito para comprar motosserra, machados e demais itens necessários para desbravar o Módulo Rural a tinha direito, nas terras fronteiriças entre a Vila Nova com a Vila do Iata.

Zézão derrubou árvores, cortou cipós, arranhou todo o corpo com os espinhos unha-de-gato, foi mordido por cobra e quase morreu, pegou duas malárias, se alimentou de palmitos, frutas silvestres e comeu macaco e cobras até enjoar. Trocou tiros com pistoleiros posseiros, fez aceiros, queimou restos de mataria e por fim, depois de dois verões, ou tempo de seca como o povo da região dizia, deixou a terra limpa para plantar e criar gado.

Ano após ano, entrava Inverno e saía Verão, Zezão trabalhou de sol a sol, plantando arroz, milho, feijão, amendoim e mandioca; com a venda da produção, depois de pagar a parcela do empréstimo, guardava com extrema avareza os parcos lucros na intenção de comprar umas cabeças de gado.

Sua obsessão era virar fazendeiro.

Com o tempo, depois de possuir um incipiente rebanho, abandonou a atividade agrícola, transformou tudo em pasto e dedicou-se à cria/recria. Com os lucros foi comprando terras e bois. A obsessão do Zezão era trabalhar como um mouro para comprar terras e gado. Quando chamado para os fandangos e forrós nas Vilas ou casas de mulher-dama, Zezão dizia que não tinha tempo pra esse tipo de vadiagem. Tinha vindo para aquelas terras para ganhar dinheiro e ficar rico. Na verdade, os vizinhos reparavam, Zezão comia mal, se vestia com andrajos e não se divertia pela simples razão de ser um mão-de-vaca. O homem era tão muquirana, diziam, que se ele um dia mergulhasse no igarapé que banhava suas terras, segurando uma pastilha de Sonrisal, o antiácido não se dissolveria.

Trabalhando feito um condenado e guardando com zelo alucinado cada centavo ganho para comprar terras obsessivamente, décadas depois, Zézão tinha ampliado o Módulo Rural. De um pedaço de terra do tamanho de sessenta hectares, para fazendas que, somadas, mediam em torno de 5.000 alqueires.

Zezão, de simples parceleiro, tinha progredido para ser um dos maiores criadores de gado da região. Por esse motivo, nas Feiras Pecuárias ganhou a alcunha de “Zezão do Boi”.
Em 2.010, Zézão do Boi era um rico, muquirana e bem sucedido criador de gado paparicado por frigoríficos e gerentes de banco. No entanto, dada a sua extrema avareza, era malquisto por empregados e fornecedores. Ainda que a conta bancária explodisse em recursos, Zézão do Boi não era dado a vaidades. Nem visitar o torrão natal, sequer demonstrou vontade. Se alguém perguntava a razão, respondia que tinha fugido da miséria. Voltar pra quê? E nessa toada vivia o rico fazendeiro. Quando comparecia às reuniões de negócios, mas parecia um desvalido peão de trecho do que o proprietário de vastas extensões de terra.

O homem, já com a idade começando a avançar tinha tudo, menos amizades e a mão de uma mulher para lhe fazer um cafuné nas noites solitárias em que deitado na rede atada na varanda da Sede da fazenda, tinha como companhia, apenas o mugido do extenso rebanho, o coaxar dos sapos e o lamento das corujas-rasga-mortalha.

De repente, Zezão se deu conta que sentia falta do cafuné de uma mulher só dele.

Um dia, conversando com o Gerente do Banco, o rico e solitário Zezão reparou em uma cabocla de cabelos negros, crespos e revoltos. Jeito espevitado, corpo de violão e ancas de potranca marchadeira. A tal cabocla quando sorria, os dentes brancos como o leite da Malhada, a vaquinha de estimação e campeã imbatível nas Feiras Agropecuárias, rebrilhavam à luz ambiente. Os olhos castanhos, cintilavam irrequietos.

Como um garanhão no cio, o fazendeiro sentiu os bagos doerem. Olhando para a charmosa cabocla, Zezão cismou que aquela potranca tinha que fazer parte do seu rebanho. Perguntou quem era. Foi informado que a cabocla respondia pelo nome de Santinha, era lavadeira de roupas e ocasionalmente cozinheira, e que de vez em quando vinha ao banco para descontar os cheques recebidos dos fregueses. Era solteira sem parentes e nem aderentes, vivia numa casinha simples nos arrabaldes da cidade e gostava de bater coxas nos forrós.

Zezão depois de mover mundos e fundos, contratou a cabocla pelo dobro do salário mínimo, e não demorou muito, além de cozinhar, lavar e passar, Santinha estava fazendo os cafunés que o fazendeiro sentia tanta falta.

Daí em diante, as coisas aconteceram rápido. A cabocla, de lavadeira e cozinheira, em menos de um ano, casada de papel passado, circulava pela cidade montada em uma égua mangalarga ao lado do Zezão.

Tinha virado fazendeira, a Santinha.

Mas era fazendeira só da porteira para fora. Na fazenda, devido a avareza do Zezão, Santinha sentia saudades do tempo em que era lavadeira. Pelo menos, nesse tempo, aos domingos, de vez em quando comia uma galinha caipira ou uma traíra pescada no igarapé dos fundos da casa. Na fazenda, ainda que dezenas de galinhas andassem ciscando pelo pasto, e no chiqueiro bacuri estourasse de gordo, Zezão não deixava abater nem um frango magro. Dizia que criação, a gente tinha era pra vender, não era pra comer.

E em progressão geométrica, um ano depois do concorrido casamento do Zezão do Boi, a cidade foi surpreendida com a notícia do falecimento do fazendeiro.

Diziam que o infeliz do Zezão, montado no Ventania, um vistoso cavalo da raça Quarto de Milha, em vistoria dos pastos na fundiária da fazenda, o animal tinha se assustado com uma cobra, calangro ou qualquer outro animal rasteiro. De certo, disse o vaqueiro que o encontrou, o bruto corcoveou e o patrão pego de surpresa, caiu e bateu com a cabeça na pedra, passando dessa pra melhor. Como prova, completou o vaqueiro depois de cuspir de lado e coçar os ovos, era o sangue junto com os miolos que escorriam do pedregulho.

A polícia esteve andando pela fazenda, fez um "ror" de perguntas; o Delegado ficou um final de semana inteiro conversando com a viúva, e quando foi embora, disse que tinha concluído o inquérito como acidente e não se fala mais nisso.

No entanto, como a língua do povo é ligeira e ferina, corria a boca pequena que o vaqueiro que encontrara o Zezão do Boi, de uma hora para outra, pedira as contas na fazenda e, de vaqueiro barrela, virara chacareiro no Município de Rolim de Moura, Região Sul do Estado

Diziam também que a viúva Santinha, que de santinha não tinha nada, passado os sete dias do luto, com o defunto ainda quente na cova, passara uma boa partida de gado nos cobres e viajara para a Capital.

Lá, depois de tomar um banho de loja, mandara aumentar os peitos e afilar o nariz.

O certo é que depois de voltar para a fazenda, se amancebara com um antigo namorado que anos antes havia tirado os tampos dela, e o colocara na Sede junto com cama, mesa, banho e cuia. O homem mandava e desmandava em tudo. Era o novo dono!

Certo dia, num sábado que anunciava um final de semana ensolarado, o amancebado da Santinha sentado numa cadeira de balanço na varanda da Sede da Fazenda, levou a mão ao balde gelo postado numa mesinha ao lado, pegou uma “Long Neck” e chamou um peão que passava em frente ao alpendre. O peão se aproximou, tirou o chapéu e ficou aguardando ordens.

O novo patrão abriu a cerveja e disse que estava esperando uns amigos para um churrasco no domingo. Iria comemorar o aniversário dele. Os barris de chope já estavam encomendados no frigorífico, e para a festa ser de primeira, queria um churrasco de “costela-de-chão”. Estalando a língua, falou que churrasco bom, é churrasco de carne fresca. Para isso, precisava que o empregado abatesse uma novilha grande e gorda. Dito isso, olhou para o rebanho que pastava na frente da Sede e apontou para uma novilha taluda perto do curral.

O peão olhou surpreso para o novo mandachuva e comentou:

-O finado Zezão do Boi, o antigo patrão, não gostava de matar criação. Ainda mais uma novilha dessa aí, candidata a campeã na Feira Agropecuária.

Abrindo mais uma “Long Neck”, o novo macho da Casa Grande cuspiu de lado, tirou um cisco do bico da bota texana - mimo de Santinha -, e do alto da varanda olhou para baixo, para o empregado rodando humildemente o chapéu na mão, depois levantou a vista para a imensidão de terras e o rebanho de nelore ondulando no pasto, fez uma pausa como quem está enfadado e rosnou com autoridade.
-Que antigo patrão que nada, peão? O Zezão nunca foi dono ou mandou nisso aqui. Ele era meu capataz, apenas!

Arigó
João Pessoa/PB-Mai 2021