Estanquei (o dia depois que morri)

Já faz algum tempo...

Mas é que houve um momento no qual eu morri. Foi no dia em que tudo era noite, tinham algumas palavras e um sinal. Depois um silêncio, então eu morri.

Também haviam letras e mais papel, pessoas e mais relógios, chaves e mais arquivos. A verdade é que não demorou muito sem que eu percebesse que aquilo havia acabado.

Não que fosse muita coisa, mas era meu todo também. Um pedaço grande de mim se foi quando eu morri.

Houve um grito baixinho, também teve lágrimas e raiva. Haviam algumas vozes, não me lembro ao certo de quem, ou mesmo se eram pessoas. Lembro-me do arrependimento...

É que eu não podia mais...

Na verdade, ainda não posso!

Durante um instante eu estava ali sentado, encolhido. Ainda hoje estou. Só que agora são algumas vezes, tem dias que o tempo todo.

Quando eu morri, me quebrei. Desmoronei, engasguei, suspirei e - ainda nem sei como - resisti. Até hoje eu não sei como consigo.

Tem momentos em que o reflexo do espelho parece eu, mas o tempo todo nem tanto. O que resta ainda está aqui, come, respira, engole e engasga. Eu sei que é real, mas também sei que isso não passa de uma cópia mau acabada daquilo que já fui. Mas tem sua beleza, não posso negar. Fico vendo e revendo essa imagem retorcida de mim. Bom... Ainda que não reste muito, ainda tem algo de meu ali.

E tenho me apoiado no pouco que me resta, mas com isso não me sobra nada. É deliberadamente difícil se equilibrar no vazio, então fico tentando, as vezes dá, quase sempre não.

Só agora eu percebi que a vida se tornou tentativa, estou escalando uma montanha toda feita delas. Tentativa é uma coisinha imprevisível e duvidosa: está ali na sua frente, grande, exuberante e inesgotável, mas nem sempre funciona. Em alguma delas eu me corto, em todas elas eu sangro. Tenho sangrado muito ultimamente, nas últimas vezes nem doeu. Sangrar tem disso, no início apavora, em seguida incomoda um pouco, depois acaba, estanca.

Estanquei!