O que me resta

Incessante e receosa, as palavras lhe escapavam por entre os dentes e desaguavam sobre o prato frio e rançoso de salada.

Mais um gélido jantar solitário a desafiava no sofá da sala.

Pouco tempo se passaram desde o início, desde o agora. Ela mal sabia como havia acabado ali, diante de si mesma.

Uma penumbra refletia parte de seu rosto opaco sob o copo com refrigerante velho e sem graça.

Recordava daquele dia em que não tentou e de todos os outros em que não insistiu. Ela ainda não insiste muito agora. Com o passar dos anos, já soma quilos e mais quilos de palavras líquidas ingeridas a contra gosto.

A vida tem sido isso, muita água e pouca vontade. Mas não de chorar, porque ela chora, mas de se calar, de suspirar, de arriscar.

Sim, já faz tempo que ela cresceu e que toma as próprias decisões. Já faz meses que largou o cigarro e que não se atrasa mais para o trabalho.

Também tem feito todas as refeições, mesmo sem gostar. É que tem esse livro largado no quarto, um dia ela vai ler. Eu sei que vai.

Mas a verdade é que ela ainda não se arrisca e nem tenta ser feliz. Sempre viu a felicidade como uma vontade desesperada de mudança perene.

É que felicidade não dura muito, sempre acaba.

Não que não tivesse fome de felicidade, ela até tinha, mas não se atrevia a galgar a alegria à colheradas. Ela era comedida e antenada. Sabia que a falta é pior que pouco. Ficava então assim, no pouco, contando as gramas: aos poucos bebia, comia, sorria, tentava... Mal se arriscava e quase sempre morria. Mas não demais, que é para não gastar.

Horas se passaram e houve mais dias que não foram exatamente iguais aos anteriores.

Agora, ela ainda carregava nos olhos esse aspecto jocoso de quem espera sem saber, de quem não se cansa de aguentar. Forçosa que era, tolerava. Ela tinha aquelas poucas pessoas, algumas palavras, certa quantia em dinheiro e mais nenhum cigarro. Mesmo assim, ela aguentava.

Carregava consigo esse pingente opaco, com quem se apegava. Era uma santa vestida de freira, dessas com olhar maternal e sem brilho. Era esta mais uma das tais pequenezes que lhe bastavam.

Mulher de alguma fé, carregava pequenina consigo certa esperança. Ainda que insuficiente para tentar, continha o bastante para esperar.

Calou-se, respirou, mergulho dentro de si mesma e acordou.

Ela, que de tanto esperar em si mesma, vingava cansada, já não podia mais acreditar; não por não saber que era este o tal caminho a seguir, mas por entender, que em meio a tantas portas, era este o caminho que lhe restava.

Aceitou, trocou os sapatos e caminhou.